Folha Informativa 05-11-2023

Domingo XXXI do Tempo Comum (PDF) TEXTO

A festa da humildade

A Trindade adorada por todos os Santos, pintor espanhol

A humildade torna-te livre, verdadeiro, leve.

A pessoa humilde – ainda que seja rica e poderosa – sabe bem que não é dona de nada, nem sequer do instante que se segue àquele que está a viver.
E, acolhe, portanto, a vida como um dom.
Incrível, imenso, único, irrepetível, do qual jorra, como riacho da rocha, a água pura e fresca da gratidão.

No dia dedicado aos nossos irmãos e irmãs que nos veem do Alto, invocamos o dom indispensável da humildade.
A certeza de que, como nós, Deus ama a criação e cada criatura, impele-nos a amá-las e a servi-las.
Sem esperarmos recompensa alguma.
Tão grande é, com efeito o dom recebido, que a eternidade não chegará para o compreender e saborear plenamente.

Maurizio Patriciello, In Avvenire 2023

 

 

Amar a Deus com toda a vida

Papa Francisco, 29 de outubro de 2023, (excertos) Homilia na conclusão do sínodo dos bispos

Foto de Ricardo Perna, Agência Ecclesia

É um pretexto que leva o doutor da Lei a apresentar-se a Jesus; pretende unicamente pô-Lo à prova.

A pergunta dele é importante, sempre atual, surgindo de vez em quando no nosso coração e na vida da Igreja: «Qual é o maior mandamento?». Qual é a coisa que conta tanto a ponto de ser o princípio inspirador de tudo? E a resposta de Jesus é clara: «Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente. Este é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo».

Ao concluirmos este pedaço de caminho que percorremos, é importante fixar o «princípio e fundamento», do qual uma vez e outra tudo começa: amar. Amar a Deus com toda a vida e amar o próximo como a si mesmo. Não está nas nossas estratégias, nos cálculos humanos, nem nas modas do mundo, mas no amor a Deus e ao próximo: é aqui que está o coração de tudo. Como traduzir tal impulso de amor? Ama-se a Deus com a adoração e o serviço.

Amar é adorar. A maravilha própria da adoração é essencial na Igreja, sobretudo neste tempo em que perdemos o hábito da adoração. De facto, adorar significa reconhecer na fé que só Deus é Senhor e que, da ternura do seu amor, dependem as nossas vidas, o caminho da Igreja, as sortes da história. Ele é o sentido do nosso viver.
Ao adorá-Lo, redescobrimo-nos livres.

Quem adora a Deus rejeita os ídolos, pois, enquanto Deus liberta, os ídolos tornam-nos escravos. A Escritura é severa contra a idolatria, porque os ídolos são obra do homem e, por este, manipulados, ao passo que Deus é sempre o Vivente, que está aqui e no além, «que não é feito como eu O penso, que não depende de quanto eu espero d’Ele e pode transtornar as minhas expetativas, precisamente porque está vivo. E a prova de que nem sempre temos a ideia certa de Deus é o facto de às vezes ficarmos dececionados: eu esperava isto, imaginava que Deus Se comportasse assim, mas enganei-me. Deste modo trilhamos de novo o caminho da idolatria, querendo que o Senhor atue segundo a imagem que nós fizemos d’Ele». Isto é um risco que sempre podemos correr: pensar em «controlar Deus», encerrar o seu amor nos nossos esquemas, quando, pelo contrário, o seu agir é sempre imprevisível, ultrapassa-nos e por isso este agir de Deus suscita maravilha e exige adoração. Como é importante este maravilhar-se!

Foto de Ricardo Perna, Agência Ecclesia

Sempre devemos lutar contra as idolatrias: ânsia do sucesso, autoafirmação a todo custo, ganância, o encanto do carreirismo; ou a minha espiritualidade, as minhas ideias religiosas, a minha habilidade pastoral…
Dediquemos diariamente um tempo à intimidade com Jesus, diante do sacrário.
Adore-se o Senhor em cada diocese, em cada paróquia, em cada comunidade!
Porque só assim nos voltaremos para Jesus, e não para nós mesmos; porque só através do silêncio adorador é que a Palavra de Deus habitará as nossas palavras; porque só diante d’Ele seremos purificados, transformados e renovados pelo fogo do seu Espírito.

 

Amar é servir. No mandamento maior, Cristo liga Deus e o próximo, para que não apareçam jamais separados. Não há amor a Deus sem envolvimento no cuidado do próximo, caso contrário corre-se o risco do farisaísmo. Talvez tenhamos muitas e belas ideias para reformar a Igreja, mas lembremo-nos: adorar a Deus e amar os irmãos com o seu amor, são a grande e perene reforma.
Ser Igreja adoradora e Igreja do serviço, que lava os pés à humanidade ferida, acompanha o caminho dos mais frágeis, dos débeis e dos descartados, sai com ternura ao encontro dos mais pobres, daqueles que são vítimas das atrocidades da guerra; (que pensa) nas tribulações dos migrantes, no sofrimento escondido de quem se encontra sozinho e em condições de pobreza; em quem é esmagado pelos fardos da vida; em quem já não tem mais lágrimas, em quem não tem voz.
E penso nas vezes em que, por trás de lindas palavras e promessas, se favorecem formas de exploração, ou nada se faz para as evitar. É um pecado grave explorar os mais frágeis, corrói a fraternidade e destrói a sociedade.

A Igreja que somos chamados a sonhar é serva de todos, dos últimos. Acolhe, serve, ama, perdoa, sem nunca exigir antes um atestado de «boa conduta». Tem as portas abertas, é porto de misericórdia.

Nesta (conclusão da Assembleia Sinodal) «conversação do Espírito», pudemos experimentar a terna presença do Senhor e descobrir a beleza da fraternidade. Ouvimo-nos reciprocamente e sobretudo, na rica variedade das nossas histórias e sensibilidades, pusemo-nos à escuta do Espírito Santo.
Hoje não vemos o fruto completo deste processo, mas podemos com clarividência olhar o horizonte que se abre diante de nós: o Senhor guiar-nos-á e ajudar-nos-á a ser Igreja mais sinodal e mais missionária, que adora a Deus e serve as mulheres e os homens do nosso tempo, saindo para levar a todos a alegria consoladora do Evangelho.

Bem-aventurados os distantes

Tomás Halík, Paciência com Deus, 2013

Giotto, Zaqueu

Bem-aventurados sois vós os que estais nas franjas, pois ficareis no centro, no coração!

Nisso se poderia perfeitamente resumir o grosso de tudo o que Jesus disse e fez. Jesus ignorou completamente grande parte daquilo que era considerado pelas outras pessoas o centro inamovível – isso revela-se de modo particular na sua atitude frente às provisões rituais da Lei. Além disso, colocou no centro apenas um valor, um valor que era absoluto para Ele: o amor, convidando todos os que se encontravam «nas franjas» a este novo centro.

O Reino que Ele veio proclamar, o futuro escatológico prometido, que se deverá revelar em plenitude no fim dos tempos, também é aqui e agora – em Cristo, por Ele, com Ele e nele. É essa a boa-nova do Evangelho. Os que estavam nas franjas encontram-se agora no centro, porque Jesus se sentou à mesa com eles e os fez entrar no seu coração. Mas o seu coração pode estar mais oculto do que se poderia pensar ao ver algumas pinturas piedosas. «Onde estiver o teu tesouro, aí estará também o teu coração», diz Jesus. E não consiste o seu tesouro, precisamente, em todas aquelas pessoas situadas nas franjas – incluindo as que duvidam e as que procuram?

 

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Folha Informativa 29-10-2023

Domingo XXX do Tempo Comum (PDF) TEXTO

Senhor, que queres que eu faça?

Heinrich Hoffmann, Jesus e o jovem rico

Senhor, para que nos proporcionaste este poder?

Por que depositaste em nós essa faculdade de escolher-Te ou rejeitar-te? Tu desejas que empreguemos acertadamente esta nossa capacidade.

Senhor, que queres que eu faça? E a resposta é diáfana, precisa: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com toda a tua mente.

Ninguém pode escolher por nós. Este é o grau supremo da dignidade nos homens: que se encaminhem para o bem por si próprios, não por outros.
Muitos de nós herdamos dos pais a fé católica e, por graça de Deus, desde que recebemos o Baptismo, recém-nascidos ainda, começou-nos na alma a vida sobrenatural.

Mas temos de renovar ao longo da nossa existência – e mesmo ao longo de cada jornada – a determinação de amar a Deus sobre todas as coisas.
Josemaria Escrivá, Amigos de Deus

Amarás o Senhor com todo o coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças

Papa Francisco, 2017

Michelangelo, Pietá

Amar de todo o coração significa fazê-lo sem reservas, sem duplicidades, sem interesses espúrios, sem procurar-se a si mesmo no êxito pessoal ou na carreira. A caridade pastoral supõe sair ao encontro do outro, compreendendo-o, aceitando-o e perdoando-o de todo o coração. Isso é caridade pastoral.
Mas sozinhos não é possível crescer nessa caridade. Por isso o Senhor chamou-nos para ser uma comunidade, de modo que essa caridade congregue todos os sacerdotes com um especial vínculo no ministério e na fraternidade.

Para isso necessita-se da ajuda do Espírito Santo, mas também o combate espiritual pessoal.
Isto não passou de moda, continua a ser tão actual como nos primeiros tempos da Igreja. Trata-se de um desafio permanente para superar o individualismo, viver a diversidade como um dom, buscando a unidade do presbitério, que é signo da presença de Deus na vida da comunidade.
Dessa maneira, reunidos em nome do Senhor, especialmente quando celebram a Eucaristia, manifestam, inclusive sacramentalmente, que Ele é o amor do seu coração.

Segundo: amar com toda a alma.
É estar disposto a oferecer a vida. Esta atitude deve persistir no tempo e abarcar todo o nosso ser.
Por isso a formação de um sacerdote não pode ser unicamente académica, ainda que esta seja muito importante e necessária, mas tem de ser um processo integral, que abarque todas as facetas da vida. A formação há de servir-lhes para crescer e, ao mesmo tempo, para se aproximar de Deus e dos irmãos.
Por favor, não se conformem com conseguir um título, mas sejam discípulos a tempo inteiro para anunciar a mensagem evangélica de modo credível e compreensível ao homem de hoje. Neste momento é importante crescer no hábito do discernimento, que lhes permita valorizar cada instante e moção, inclusive o que parece oposto e contraditório, e filtrar o que vem do Espírito; uma graça que devemos pedir de joelhos. Só a partir desta base, através das múltiplas tarefas no exercício do ministério, poderão formar os demais nesse discernimento que leva à Ressurreição e à Vida, e lhes permite dar uma resposta consciente e generosa a Deus e aos irmãos.
Da formação unicamente académica nascem todas as ideologias que empestam a Igreja, de um sinal ou de outro, do academismo clerical. Quatro são as colunas que a formação deve ter: formação académica, formação espiritual, formação comunitária e formação apostólica. E as quatro actuam entre si.

Finalmente, a terceira resposta de Jesus, amar com todas as forças,
Recorda-nos que onde está o nosso tesouro está o nosso coração, e que é nas nossas pequenas coisas, seguranças e afectos, onde jogamos o ser capazes de dizer que sim ao Senhor ou virar-lhe as costas como o jovem rico.
Não se podem contentar com ter uma vida ordenada e cómoda, que lhes permita viver sem preocupações, sem sentir a exigência de cultivar um espírito de pobreza radicado no Coração de Cristo que, sendo rico, se fez pobre por nosso amor ou, como diz o texto, para nos enriquecer.
Pede-se-nos adquirir a autêntica liberdade de filhos de Deus, numa adequada relação com o mundo e com os bens terrenos, segundo o exemplo dos apóstolos, a quem Jesus convida a confiar na Providência e a segui-lo sem pesos nem ataduras.
Não se esqueçam disto: o diabo entra sempre pelo bolso, sempre.
Além disso, é bom aprender a dar graças pelo que temos, renunciando generosa e voluntariamente ao supérfluo, para estar mais próximo dos pobres e dos frágeis. (…) sejam testemunhas de Jesus, através da simplicidade e austeridade de vida, para chegarem a ser promotores credíveis de uma verdadeira justiça social.

 

Construir a paz

Papa Francisco, 2022

Todos desejamos a paz, mas muitas vezes o que queremos é estar em paz, sermos deixados em paz, não ter problemas, mas tranquilidade.
Jesus, por outro lado, não chama bem-aventurados os tranquilos, aqueles que estão em paz, mas aqueles que fazem a paz, os construtores, os pacificadores.

A paz tem que se construída e, como qualquer construção, precisa de colaboração e paciência. Gostaríamos que a paz chovesse do alto, ao invés disso a Bíblia fala de “semente da paz”, porque ela germina do solo da vida, da semente do nosso coração; cresce em silêncio, dia após dia, através de obras de justiça e misericórdia, como nos mostram as testemunhas luminosas que hoje festejamos. (Dia de Todos os Santos)

A paz requer colaboração e paciência, não é alcançada conquistando ou derrotando alguém, nunca é violenta, nunca é armada.
A paz não vem da força e do poder, como muitos são levados a acreditar.
O primeiro passo para ser um agente de paz é desarmar o coração. Todos nós estamos equipados com pensamentos agressivos, um contra o outro, e palavras afiadas, e pensamos em nos defender com os arames farpados da lamentação e com os muros de concreto da indiferença. Entre lamentação e indiferença nos defendemos. Isso não é paz. É guerra.

Que a Virgem Maria, Rainha de todos os santos, nos ajude a sermos construtores de paz na vida de cada dia.

 

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Folha Informativa 22-10-2023

Domingo XXIX do Tempo Comum (PDF) TEXTO

Vocação: graça e missão

Tiepoli, Santa Cecília

É uma preciosa ocasião para redescobrir, maravilhados, que a chamada do Senhor é graça, dom gratuito e, ao mesmo tempo, é empenho de partir, sair para levar o Evangelho.

Somos chamados a uma fé testemunhada, que estreita fortemente o vínculo entre a vida da graça, através dos Sacramentos e da comunhão eclesial, e o apostolado no mundo.

Animado pelo Espírito, o cristão deixa-se interpelar pelas periferias existenciais e é sensível aos dramas humanos, tendo sempre bem presente que a missão é obra de Deus e não a realizamos sozinhos, mas em comunhão eclesial, juntamente com os irmãos e irmãs, guiados pelos Pastores. Pois este sempre foi o sonho de Deus: vivermos com Ele em comunhão de amor. Somos feitos para amar.

No decurso da nossa vida, esta chamada, inscrita nas fibras do nosso ser e portadora do segredo da felicidade, alcança-nos, pela acção do Espírito Santo, de maneira sempre nova, ilumina a nossa inteligência, infunde vigor na vontade, enche-nos de admiração e faz arder o nosso coração.

Papa Francisco, 2023

 

Vem, Espírito Santo

D. (Card.) José Tolentino Mendonça , 2020 (adaptado)

Joseolgon, Pentecostes

Há uma materialidade na vida, no corpo que somos, naquilo de que precisamos para a vida. Somos matéria. Mas ao mesmo tempo não somos só isto, somos mais, uma outra coisa, uma respiração, um mistério que para além da matéria é espiritual, é puramente espiritual.
O mesmo acontece com a Igreja.

O que é a Igreja? Podemos descrevê-la do exterior, sociologicamente, e dizer: é uma sociedade. Fazemos parte de uma pequena sociedade de pessoas que se reconhecem, que têm laços recíprocos, que mantêm rituais entre elas, em que existe uma hierarquia que dá a esta sociedade unidade, orientação e doutrina. Vista do exterior, a Igreja é muitas vezes analisada principalmente deste modo.
Não basta aceitar o convite para seguir o Senhor, é necessário estar aberto a um caminho de conversão que mude o coração.
O hábito da misericórdia, que Deus nos oferece incessantemente, é um dom gratuito do seu amor, é precisamente a graça. E requer ser recebido com maravilha e alegria.

A Igreja tem uma dimensão institucional, porque é composta de mulheres e homens, mas a Igreja tem principalmente uma natureza carismática. Mas a Igreja é este mistério de relação, de revelação, de viagem, de peregrinação que cada um de nós está a fazer assistido pelo Espírito Santo. É necessário escutar aquilo que diz o Espírito Santo, a partir de cada um, para compreender o que é a Igreja. Em cada um de nós, o Espírito Santo actua, com uma imaginação divina, com uma criatividade de amor, suscita um impulso, um desejo, uma inquietação, um mal-estar, uma insatisfação, um querer mais, um desejo de fazer, de transformar, a vontade de correr riscos, de ir além. É o Espírito que nos impulsiona a tornarmo-nos cristãos originais, verdadeiros, felizes.
Por este motivo, as todas imagens eclesiológicas que S. Paulo usa seguem esta linha.

Precisamos de todos. Porque somos uma realidade pneumática, somos uma realidade carismática, somos uma realidade que é uma associação de dons. Reforçamo-nos, uns aos outros, neste caminho que é movido pelo Espírito Santo.
Devemos escutar o Espírito Santo, devemos contar mais com Ele, com a sua ajuda. S. Paulo diz, por exemplo: «Nós não sabemos como rezar, é o Espírito Santo que vem em auxílio da nossa fragilidade, e grita dentro de nós, com suspiros inefáveis: “Abbá, Pai!”. Por isso, quando rezo, não sou eu que rezo sozinho, é o Espírito Santo que em mim Se une à minha fragilidade para chamar a Deus “Pai”».

Nas outras dimensões da nossa vida somos também uma consequência do Espírito Santo.
O Espírito Santo é a vida espiritual, é a vida de Cristo, é o Espírito de Cristo em cada um de nós que nos torna vivos, que nos torna cristãos.
Ser cristãos não é uma questão de partilhar uma cultura, uma tradição, um rito. Ser cristãos é sentir o coração que arde, é sentir que somos o templo do Espírito Santo, um lugar sagrado no meio do mundo. É sentir que este único e múltiplo Espírito, que nos faz convergir e nos projecta mais longe, se derramou não só sobre alguns, mas sobre cada um de nós. E assim, cada um de nós é uma expressão do Espírito Santo.

Escola Emiliana, Descida do Espírito Santo

Activemos o Espírito Santo em nós. Por vezes está presente nas nossas vidas, mas está desligado, como se não existisse. É importante que cada um de nós escute aquilo que lhe diz, porque fala, reforça, conforta, exorta, pacifica cada um de nós, porque é o Espírito do amor, é o Espírito do amor de Deus derramado nos nossos corações. Sentimos este amor dentro de nós.

O primeiro Pentecostes é muito belo, quando os discípulos se juntaram, todos aterrorizados. Perguntavam-se: «E agora, o vai acontecer? Temos os pés amarrados pelo medo, não sabemos nada, não podemos fazer nada, temos mais ansiedades que certezas, temos mais dúvidas que fé. O que vai acontecer agora?». O cristianismo é possível apenas porque o Espírito Santo desce. E quando o Espírito Santo desce sobre cada um deles, começaram a falar línguas. Podemos interpretá-lo desta maneira: o Espírito Santo faz-me falar uma língua nova. Não só uma outra língua, mas uma língua outra. E que língua é a do Espírito Santo?

É a língua dos seus dons, a língua do amor, a língua da alegria, a língua da fortaleza, que é uma língua universal; é a linguagem do bom conselho, da exortação, da protecção, do abraço, que é uma linguagem universal.
A língua do Espírito Santo não é como o italiano ou o francês ou o chinês, é uma língua universal que todos compreendem e todos têm a capacidade de falar.

Que o Espírito Santo possa vir sobre nós.
Peçamo-l’O do profundo dos nossos corações «Vem, vem! Vem à terra árida da minha vida, vem à minha solidão, vem à minha dúvida, vem ao meu silêncio, vem à minha fragilidade, vem.
Vem e torna-me o teu instrumento, torna-me o teu canal, torna-me o teu artesão, o teu apresentador».

Transformação pastoral

Papa Francisco, 2023

A assembleia sinodal em curso no Vaticano insere-se na dinâmica de mudança iniciada por São João XXIII, numa transformação essencialmente pastoral.

Não se trata apenas de mudar a moda, mas de uma mudança de crescimento e em favor da dignidade das pessoas. E aí é que está o progresso teológico, da teologia moral e de todas as ciências eclesiásticas, incluindo a interpretação das Escrituras, que têm progredido de acordo com o sentir da Igreja.

O núcleo da mudança é essencialmente pastoral, sem negar o essencial da Igreja. Quaisquer mudanças, na Igreja, devem acontecer sempre em harmonia, porque as rupturas não são boas.

Gosto de usar a imagem da árvore e as suas raízes: a raiz recebe toda a humidade da terra e puxa-a para cima através do tronco. Quando alguém se separa disso, acaba seco e sem tradição. Tradição no bom sentido da palavra.

O progresso é necessário e a Igreja deve inserir estas novidades com uma reflexão muito séria, do ponto de vista humano. Tem de estar muito atenta, com os seus pensadores em diálogo. Devemos dialogar com todo o progresso científico.
A Igreja deve dialogar com todos, mas a partir da sua identidade, não a partir de uma identidade emprestada.

Ao longo da história, a Igreja tem mudado em muitas coisas, na forma de propor uma verdade que não muda. Ou seja, a revelação de Jesus Cristo não muda, o dogma da Igreja não muda, mas cresce, desenvolve-se.

Quem não está neste caminho é aquele que dá um passo atrás e se fecha em si mesmo. As mudanças na Igreja ocorrem neste fluxo de identidade, que tem de ir mudando à medida que os desafios se vão apresentando.
A consciência religiosa cresceu muito, é outra coisa, amadureceu, mas a forma de me expressar com Deus é sempre simples.

 

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Folha Informativa 15-10-2023

Domingo XXVIII do Tempo Comum (PDF) TEXTO

Obrigai-os a entrar!

Eugène Burnand, Convite para a Festa

Muitas vezes os eleitos são figuras secundárias, frágeis, descartadas pela sociedade. Há, depois uma nota à primeira vista desconcertante.

Mesmo alguns destes marginalizados opõem resistência, talvez até por vergonha: «Obrigai-os a entrar», diz ao seu mensageiro o senhor que convida.

Mas na vocação não é sempre necessário o encontro entre o chamamento divino e a liberdade humana?

Que sentido tem, então, este obrigar a entrar, frase que se tornou proverbial e por vezes adoptada para impor uma norma contra a consciência e a liberdade pessoal?

A resposta é bem diferente: a “força” para impelir estes miseráveis a acolher o chamamento é apenas a expressão da graça divina que triunfa sobre as hesitações, as impreparações e os limites das pessoas; não é uma violação da sua consciência, mas um apoio na sua escolha para aderir à vocação.

Card. Gianfranco Ravasi , 2018

Ninguém é excluído da Casa de Deus se aceitar a graça que Ele concede

Papa Francisco, 2020

Banquete nupcial

Com a narração da parábola do banquete nupcial, Jesus delineia o desígnio de Deus para a humanidade. O rei que «preparou um banquete nupcial para o seu filho» é a imagem do Pai que preparou para toda a família humana uma maravilhosa festa de amor e comunhão ao redor do seu Filho unigénito.

Duas vezes o rei envia os seus servos para chamar os convidados mas eles recusam-se, não querem ir ao banquete porque têm outras coisas em que pensar: campos e negócios.

Muitas vezes também nós antepomos os nossos interesses e coisas materiais ao Senhor que nos chama ­– e chama-nos para uma festa.

Mas o rei da parábola não quer que o salão fique vazio, porque quer doar os tesouros do seu reino. Por isso diz aos servos: «Ide, pois, às saídas dos caminhos e convidai para as bodas todos quantos encontrardes».
É assim que Deus se comporta: quando é rejeitado, em vez de Se render, insiste e convida a chamar todos aqueles que estão nas encruzilhadas, sem excluir ninguém.
Ninguém é excluído da casa de Deus.

O termo original usado pelo evangelista Mateus refere-se aos limites das estradas, ou seja, aqueles pontos onde as ruas da cidade terminam e começam os caminhos que levam à zona rural, fora da cidade, onde a vida é precária.

É a esta encruzilhada da humanidade que o rei da parábola envia os seus servos, na certeza de encontrar pessoas dispostas a sentar-se à mesa. Assim, o salão de banquetes está cheio de “excluídos”, aqueles que estão “fora”, aqueles que nunca tinham sido considerados dignos de participar numa festa, num banquete de núpcias. Pelo contrário: o senhor, o rei, diz aos mensageiros: “Convidai todos, bons e maus. Todos”!
Deus chama até os maus.

E Jesus almoçava com os publicanos, que eram os pecadores públicos, os maus.
Deus não tem medo da nossa alma ferida por tantas maldades, porque nos ama, nos convida.

E a Igreja é chamada a ir às encruzilhadas de hoje, ou seja, às periferias geográficas e existenciais da humanidade, àqueles lugares marginais, àquelas situações em que as pessoas se encontram acampadas e vivem como farrapos de humanidade sem esperança.

Não se trata de nos acomodarmos nas formas confortáveis e habituais de evangelização e de testemunho da caridade, mas de abrir as portas dos nossos corações e das nossas comunidades a todos, pois o Evangelho não é reservado a poucos eleitos.

Até os marginalizados, os rejeitados e desprezados pela sociedade, são considerados por Deus dignos do seu amor.
Ele prepara o seu banquete para todos: justos e pecadores, bons e maus, inteligentes e incultos.

No entanto, o Senhor apresenta uma condição: usar o hábito nupcial.
Quando o salão está cheio, o rei chega e cumprimenta os convidados da última hora, mas vê um deles sem o hábito nupcial, uma espécie de capa que cada convidado recebia de presente à entrada. As pessoas iam como estavam, como podiam vestir-se, sem hábito de festa. Mas à entrada era-lhes dada uma espécie de capa, um presente.
Aquele convidado, ao recusar o presente, auto-excluiu-se: assim o rei mais não pode fazer do que mandá-lo embora.
Este homem aceitou o convite, mas depois decidiu que para ele ele não significava nada: era uma pessoa auto-suficiente, não tinha desejo de mudar ou de deixar que o Senhor o mudasse.

O hábito nupcial – esta capa – simboliza a misericórdia que Deus nos concede gratuitamente, ou seja, a graça.
Sem a graça não se pode dar um passo em frente na vida cristã. Tudo é graça.
Não basta aceitar o convite para seguir o Senhor, é necessário estar aberto a um caminho de conversão que mude o coração.
O hábito da misericórdia, que Deus nos oferece incessantemente, é um dom gratuito do seu amor, é precisamente a graça.
E requer ser recebido com maravilha e alegria: “Obrigado, Senhor, por me teres concedido este dom”.

Que Maria Santíssima nos ajude a imitar os servos da parábola evangélica para sairmos dos nossos esquemas e da nossa mente fechada, anunciando a todos que o Senhor nos convida para o seu banquete, para nos oferecer a graça que salva, para nos dar o seu dom.

O banquete da comunhão

Testemunhos do sínodo, 2023

Foto Ricardo Perna, Agência Ecclesia

Os participantes do Sínodo são convidados a reflectir com os vulneráveis, os que sofrem, os fracos, e sobre a vulnerabilidade na Igreja: noutras palavras, sobre como nos tornarmos mais próximos dos mais pobres, mais capazes de acompanhar todos os baptizados numa variedade de situações humanas.

O drama da condição humana é onde a Igreja nasce e vive. Como num banquete, Deus convida a ‘provar e ver, tomar e comer’, Ele apela aos nossos sentidos: é de facto na Eucaristia que as várias dimensões da comunhão se reúnem.

Num mundo moderno que tende tanto à homogeneidade quanto à fragmentação, a comunhão é uma linguagem de beleza, uma harmonia de unidade e pluralidade.

A descrição bíblica do banquete é uma imagem que subverte o que é percebido como a ordem natural das coisas. No banquete, aqueles que não têm poder, os desprezados e os sofredores serão os primeiros por causa da proximidade de Deus.
Muitos leigos descobriram que são co-responsáveis pela missão da Igreja.

A sinodalidade, a partir de agora não deve ser apenas um momento, mas uma praxis da Igreja.Devemos ser a presença de Jesus, abertos a ouvir e acolher em lugares de dor e sofrimento, mesmo naqueles que não podemos alcançar, entre as pessoas que deixaram a Igreja e têm corações feridos: entre as mulheres vítimas de violência e preconceito, como entre os pobres e indígenas, diz Sónia Gomes de Oliveira, do Conselho Nacional do Laicato do Brasil, que compartilhou com a assembleia a sua experiência como assistente social entre os últimos e a alegria de viver o processo sinodal na Igreja de seu país.

 

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Folha Informativa 08-10-2023

Domingo XXVII do Tempo Comum (PDF) TEXTO

Na vinha de Deus, a colheita é de justiça e paz

Abel Grimmer, Parábola dos vinhateiros

A história perene de amor e traição entre Deus e o homem não terminará nem com um fracasso nem com uma vingança, mas com a oferta de uma nova possibilidade: dará a vinha a outros.

Entre Deus e o homem as derrotas servem apenas para realçar melhor o amor de Deus.

O sonho de Deus não é nem o tributo finalmente pago nem a condenação a uma pena exemplar para quem errou, mas uma vinha, um mundo que não amadureça mais cachos vermelhos de sangue e amargos de lágrimas, que não seja uma guerra perene pelo poder e pelo dinheiro, mas que amadureça uma vindima de justiça
e de paz, a revolução da ternura, a tríplice cura de si, dos outros e da criação.

P. Ermes Ronchi, 2014

 

Caminhar juntos com o olhar de Jesus

Papa Francisco, homilia de abertura do Sínodo 2023

Robert Zund, O caminho para Emaús

Jesus não Se deixa tomar pela tristeza, depois dum momento difícil da missão de Jesus, que poderíamos definir de «desolação pastoral», mas eleva os olhos ao Céu e louva o Pai por ter revelado aos simples os mistérios do Reino de Deus.

Jesus, no momento da desolação, tem um olhar capaz de ver mais além: louva a sabedoria do Pai e consegue vislumbrar o bem escondido que cresce, a semente da Palavra acolhida pelos simples, a luz do Reino de Deus que abre caminho mesmo na noite.

Na abertura da Assembleia Sinodal não nos ajuda um olhar imanente, feito de estratégias humanas, cálculos políticos ou batalhas ideológicas: se o Sínodo vai dar esta autorização, aquela outra, se vai abrir esta porta ou outra… Isso não é útil.
Não estamos aqui para realizar uma reunião parlamentar nem um plano de reformas.
O protagonista é o Espírito Santo. Estamos aqui para caminhar juntos com o olhar de Jesus, que bendiz o Pai e acolhe a quantos estão cansados e oprimidos.

Apesar de ter experimentado a rejeição e ter visto ao seu redor tanta dureza de coração, Cristo não Se deixa prender pela desilusão, não Se torna amargo, nem extingue o louvor; fundado no primado do Pai, o seu coração permanece sereno, mesmo na tempestade.
Este olhar de bênção do Senhor convida-nos também a nós a sermos uma Igreja que, de ânimo feliz, contempla a acção de Deus e discerne o presente; no meio das ondas por vezes agitadas do nosso tempo, não desanima, não procura escapatórias ideológicas, não se barrica atrás de convicções adquiridas, não cede a soluções fáceis, nem deixa que seja o mundo a ditar a sua agenda.

Convida-nos a ser uma Igreja que não enfrenta os desafios e problemas de hoje com um espírito de divisão e conflituoso, mas, pelo contrário, levanta os olhos para Deus, que é comunhão, e, com espanto e humildade, o bendiz e adora, reconhecendo-o como seu único Senhor.
Somos d’Ele e existimos apenas para O levar ao mundo. Isto nos basta!

Não queremos glórias terrenas, não queremos parecer bem aos olhos do mundo, mas fazer-lhe chegar a consolação do Evangelho, para testemunhar melhor, e a todos, o amor infinito de Deus.

Foto Ricardo Perna, Agência Ecclesia

Afirmou Bento XVI a uma Assembleia Sinodal, «para nós a questão é: Deus falou, deveras rompeu o grande silêncio, mostrou-Se, mas como podemos fazer chegar esta realidade ao homem de hoje, para que se torne salvação?». Esta é a questão fundamental.

E este é o dever primário do Sínodo: centrar de novo o nosso olhar em Deus, para sermos uma Igreja que olha, com misericórdia, a humanidade. Unida e fraterna, que escuta e dialoga; que abençoa e encoraja, que ajuda quem busca o Senhor, que sacode benevolamente os indiferentes, que abre caminhos para iniciar as pessoas na beleza da fé. Uma Igreja que tem Deus no centro e, consequentemente, não se divide internamente e nunca é dura externamente. Uma Igreja que arrisca, com Jesus, é assim que Jesus quer a Igreja, a sua Esposa.

Ao longo da sua vida, Jesus assume um olhar acolhedor para com os mais frágeis, os atribulados, os descartados. É neles que pensa, de modo particular, ao pronunciar estas palavras que ouvimos: «Vinde a Mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu vos aliviarei».

Este olhar acolhedor convida-nos também a nós a sermos uma Igreja hospitaleira, não com as portas fechadas. Num tempo complexo como o nosso, surgem novos desafios culturais e pastorais que exigem uma atitude interior cordial e gentil para os podermos encarar sem medo. No diálogo sinodal, durante esta estupenda «marcha no Espírito Santo» que realizamos juntos como Povo de Deus, oxalá possamos crescer na unidade e na amizade com o Senhor, para ver com o seu olhar os desafios de hoje; para se tornar uma Igreja que não impõe pesos e, a todos, repete: «Vinde, cansados e oprimidos; vós que vos extraviastes ou sentis distantes; vós que fechastes as portas à esperança: a Igreja está aqui para vós!». A Igreja das portas abertas a todos, todos, todos.

Diante das dificuldades e desafios que nos esperam, o olhar de bênção e acolhedor de Jesus impede-nos de cair nalgumas tentações perigosas: ser uma Igreja rígida, uma alfândega, que se arma contra o mundo e olha para trás; ser uma Igreja tépida, que se rende às modas do mundo; ser uma Igreja cansada, fechada em si mesma.

No Livro do Apocalipse, o Senhor diz «Eu estou à porta e chamo», para que a porta seja aberta. Mas tantas vezes, de dentro da Igreja, bate para que deixemos sair o Senhor, com a Igreja, para proclamar o seu Evangelho.

Foto Ricardo Perna, Agência Ecclesia

Caminhemos juntos: humildes, ardorosos e alegres. Caminhemos pelas pegadas de São Francisco de Assis, o Santo da pobreza e da paz, o «louco de Deus» que trouxe no corpo os estigmas de Jesus e, para se revestir d’Ele, despojou-se de tudo. É difícil, este despojamento interior e também exterior de todos nós, também da instituição.

O Sínodo serve para nos recordar isto: a nossa Mãe Igreja sempre precisa de purificação, de ser reparada, porque todos nós somos um Povo de pecadores perdoados, sempre necessitados de regressar à fonte que é Jesus e de nos colocarmos novamente nos caminhos do Espírito para chegar a todos com o seu Evangelho.

Francisco de Assis, num tempo de grandes lutas e divisões entre o poder temporal e o religioso, entre a Igreja institucional e as correntes heréticas, entre cristãos e outros crentes, não criticou nem atacou ninguém, mas limitou-se a pegar nas armas do Evangelho: a humildade e a unidade, a oração e a caridade. Façamos assim também nós! Humildade e unidade, oração e caridade.

Como sucede muitas vezes, o Espírito Santo rompe as nossas expectativas para criar algo de novo que supera as nossas previsões e as nossas negatividades. Posso dizer que, talvez, os momentos mais frutuosos do Sínodo são os momentos de oração, também o ambiente de oração, com o qual o Senhor actua em nós.
Deixemos que o Espírito Santo seja o protagonismo do Sínodo. E com Ele caminhemos, com confiança e alegria.

 

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Folha Informativa 01-10-2023

Domingo XXVI do Tempo Comum (PDF) TEXTO

Coerência. Não hipocrisia

Papa Francisco, 2019

Giotto Bondone, O beijo de Judas

O formal é uma expressão do real, devem caminhar juntos. Mas quando o formal se separa do real, vivemos só de formalidades e aparências.
É isto que Deus condena: viver de aparências.

Uma vida para aparecer, sem verdade na realidade do coração das pessoas. Aliás, o Senhor recomenda que sejamos muito simples nas aparências para não nos vangloriarmos das obras boas.
Parecer e não fazer: isto é hipocrisia.

A realidade deve estar unida à aparência.
Devo parecer o que sou. E devemos ir em frente deste modo. “Mas, Padre, não consigo, sou frágil…”. Bem, esta é a tua verdade, obrigado por a dizeres. Pede ao Senhor a força e vai humildemente em frente, com o que puderes.

Mas não disfarces a alma, porque se disfarçares a alma, o Senhor não te reconhecerá.
Peçamos ao Senhor a graça de sermos coerentes, de não sermos vaidosos, de não parecermos mais dignos do que somos. Peçamos esta graça: a coerência entre o formal e o real, entre a realidade e as aparências.

O Deus do mapa e o Deus do carro

Pe. Tovar de Lemos, SJ, 2018

Andreï Mironov, Parábola dos dois filhos

Terá Deus – lá no Céu – itinerários completos pensados para nós até à nossa morte? Não sei. Há pessoas que até acham que Deus não tem nenhuma vontade a nosso respeito. Dizem que Ele se limita a observar e a constatar o que nós decidimos. Acho isto um disparate. Nunca conheci nenhum pai assim. Pelo menos um pai digno desse nome…

(Eu sei que sou atrevido em tentar perceber a maneira de agir do Altíssimo. Sei perfeitamente que Deus será muito diferente de qualquer coisa que digamos ou escrevamos e que todas as nossas afirmações sobre a acção divina – mesmo as que nos parecem mais adequadas – são apenas “uma maneira de pôr as coisas”… Mas a culpa desta minha curiosidade e investigação é d’Ele, que me deu cabeça e me mandou amá-lO sobre todas as coisas com tudo o que sou, incluindo a inteligência.)

Acho difícil sermos cristãos e não pensarmos que Deus tenha “vontades” para nós. Jesus, no Pai Nosso, dizia para pedirmos ao Pai “seja feita a vossa vontade”. Na fim da parábola dos dois irmãos que um pai queria enviar para o seu campo, a pergunta de Jesus é qual deles fez a vontade do pai. No Jardim das Oliveiras, Jesus lutou dentro de Si entre fazer a sua vontade ou fazer a vontade do Pai. Cito estes três exemplos mas poderia citar muitos mais.

Algumas pessoas insistem que, se Deus tem uma vontade para nós, há-de ser uma vontade genérica. Não “vontades” específicas. Como um pai que vê o filho partir para o Luxemburgo e tem uma grande vontade que ele seja feliz, mas não tem nenhuma vontade concreta acerca do bairro onde o filho vá morar ou do trabalho que venha a desempenhar.

O exemplo é sugestivo mas falha num ponto importante. O pai do filho emigrante não sabe que opções concretas contribuirão para a felicidade do filho. Não sabe o que ajudará mais o filho a crescer como pessoa, se o trabalho de padeiro ou o de carpinteiro. Se soubesse, certamente que passaria a ter vontades específicas para ele. É o caso de Deus. Deus sabe o que é melhor para nós. Conhecendo-o certamente que o quererá. Especificamente.

Creio que, em cada decisão que tomamos onde se joga o nosso bem, não será indiferente a Deus se viramos à direita ou à esquerda. Penso, por isso, que devemos dizer que – aqui e agora – Deus tem uma vontade para cada um de nós. E que essa vontade será a concretização do grande sonho que Deus tem a nosso respeito: a salvação. (Ou seja: a nossa realização de fundo).

Se Deus conhece tudo e tem em cada encruzilhada uma vontade para nós, podemos então imaginar que Deus tenha um “itinerário” que Ele gostaria que seguíssemos durante a viagem da nossa vida aqui na terra até ao dia da nossa morte? Um trajecto ideal? Evidentemente que um tal mapa seria impossível de traçar para nós. Mas não para Deus, cuja “eternidade” O deixa fora do tempo, acima dele, numa posição em que pode ver o futuro tão claramente quanto o passado. Parece-me que esta é, pelo menos, uma possível “maneira de pôr as coisas”. O Deus do mapa. Mas se Deus tem assim um itinerário pensado para nós – se usamos este “modelo” – devemos também imaginar Deus constantemente a refazer esse itinerário pois constantemente fazemos escolhas distintas da Sua vontade…

Um outro modelo diferente é a do Deus que vai connosco no carro durante a viagem da vida. Trata-nos como filhos crescidos. Pôs o carro em nosso nome, passou-nos as chaves para a mão. Não é Ele que vai a guiar. Fica simplesmente ao nosso lado, a seguir viagem connosco. Se quisermos, em cada encruzilhada, ajuda-nos a pensar por onde é melhor seguir. Mas segue connosco onde quer que vamos. Mesmo quando nos metemos por atalhos e nos vemos em trabalhos Ele não salta fora do carro. Se acabarmos por ter um acidente e nos ferimos, Ele sofre connosco, até porque vai sentado no “lugar do morto”.

Neste modelo a “eternidade” de Deus não é tanto uma posição que Ele ocupe fora do tempo mas a Sua plena entrada no momento presente. Aliás o amor faz isto de nos fixar inteiramente no presente como se nada mais existisse para além desse momento.
Não podemos dizer que um modelo esteja certo e que outro esteja errado, obviamente. Mas podemos pensar qual dos modelos nos ajuda, nesta fase da vida, a vivermos a nossa história de um modo mais responsável.

E, sobretudo, o que mais nos ajuda a procurar a vontade de Deus.

 

 

 

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