A página da Paróquia de São Francisco Xavier vai apresentar diariamente textos para reflexão neste período conturbado da pandemia.
O texto de hoje é de Ermes Ronchi.

Abraçar Deus verdade, beleza e ternura

Ermes Ronchi, In Os beijos não dados

Albert Camus, no seu livro A morte feliz, tem uma frase que interpreta um sentimento de Deus e uma busca espiritual, típicos do mundo contemporâneo. Refere-se a uma impressão, sentida em Praga, ao visitar uma igreja barroca, e diz: «O Deus que ali se adorava era o que se teme e se honra, não o que ri com o homem, perante os veementes jogos do mar e do sol. O homem afasta-se de semelhante Deus.»

Porque o homem, em toda a sua cultura, com as suas expressões que são a literatura, a arte figurativa, o cinema, o teatro, a música, busca o rosto de um Deus que ria com o homem ou que com ele chore. Um Deus co-envolvido e co-envolvente. Não nos interessa um divino que não faça florescer o humano.

Análogo é o protesto de Pier Paolo Pasolini: «Tu não queres o canto, mas apenas a fidelidade, / pretendes o jejum e eu receio-o, / anseias pelo esquecimento e eu, ao invés, tremo só com recordações. / Eis porque a tua luz que está em mim / não me conduz a Ti.»

Experiência de um crente não-crente que diz: a tua luz está em mim, mas não me conduz, não me subjuga, não me seduz, não me leva a Ti. A Verdade sem a verdade dos afectos não persuade o ânimo humano.

«Estou cansado de “dizer” Deus, busco o Deus sensível ao coração.» A experiência de Blaise Pascal é comum a muitos crentes e abre o espaço de uma verdadeira estética teológica. Toda a cultura contemporânea busca um Deus co-envolvido e co-envolvente, sensível ao coração; não gnose ou teoria, mas experiência.

O realizador polaco Krzysztof Kieslowski, no primeiro episódio do seu Decálogo («Não terás outro Deus…»), oferece uma das definições de Deus mais emocionantes, mais «estéticas». O pequeno protagonista, Pawel, órfão de mãe e educado numa fé laica na ciência, pelo pai, engenheiro informático – o seu deus é a ciência -, pergunta à tia: «Como é Deus?» A tia permanece um momento em silêncio, depois, aproxima-se de Pawel, abraça-o, aperta-o contra si e sussurra-lhe: «Pawel, como é que agora te sentes?» «Bem», responde a criança. Em seguida, um silêncio: «Estás a ver, Deus é assim», sugere a tia.

Deus como um abraço, Deus como um estreitar caloroso e afectuoso, como emoção.

É uma das definições mais extraordinárias de Deus que a cultura actual elaborou. Um Deus sensível ao coração, estético, apreendido na experiência, no calor do vivido quotidiano. Um Deus que não é gnose ou conceito, mas proximidade e experiência, um Deus próximo que brinca e ri com os seus filhos, «perante os veementes jogos do mar e do sol».

O verdadeiro e o bem, para convencerem e se fazerem amar, devem também ser aprazíveis. Não é suficiente a veritas, é necessário o veritatis splendor, o esplendor da verdade, o resplandecer da verdade. «Esplendor» não é um termo lógico-racional, mas pertence à linguagem estética e artística, alusiva e emotiva. Escreve Hans Urs von Balthasar: «Onde a beleza se dilui, também o bem perde a sua força de atracção, a verdade esgota a sua força de conclusão lógica.»

A verdade, para se tornar parte da vida, para acorrentar a si, para seduzir – do latim secam ducere, ou seja, levar consigo -, para te prender o coração e criar o apreço fiducial que é a fé, deve ser bela e aprazível, uma verdade amável. Deus não nos seduz com a sua eternidade, mas com a beleza dos gestos de amor de Jesus Cristo, com os sulcos traçados na consciência pelos encantos do mundo que existe.

«Estou disposto a respeitar a verdade, contanto que ela se despose com a ternura» (Ezra Pound). A verdade, por si só, pode ser despótica, agressiva, violenta, originar guerras santas e inquisições. Em contrapartida, a ternura, por si só, é estéril emoção casual, sem projecto e, talvez, ainda narcisista; é o benzinho onde tudo se equivale. Benzinho é a bondade sem verdade.

Mas quando verdade e ternura estão entre si ligadas, como na figura do Pai revelado por Jesus, então oferecem a plenitude. Os cristãos são, de facto, os que fazem a verdade no amor, veritatem facientes in caritate (Ef 4,15). A verdade, por si só, pode tornar-se cruel, o amor sozinho pode ser estéril.

A verdade envolve, encanta e convence na medida em que também se faz beleza e ternura. «No mundo pós-moderno, chegou-se a uma impugnação da racionalidade, que surge como fonte de violência, na medida em que as pessoas pensam que a racionalidade possa ser imposta enquanto verdadeira. Eis o motivo por que o Cristianismo não é hoje facilmente acolhido, quando se apresenta como a “verdadeira” religião. Sucede o contrário, quando se diz que o Cristianismo é belo… A beleza é preferível à verdade», na mentalidade do homem contemporâneo (Carlo M. Martini).

Trata-se de uma situação favorável em que o Cristianismo pode mostrar melhor o seu carácter de desafio, de realismo, de criatividade, de religião ligada à vida do corpo e não apenas à mente. O Cristianismo pode repintar o ícone de Deus: um Deus enamorado e continuamente surpreendente adquire maior beleza. A fé entendida como risco e experiência torna-se mais atraente. O dogma não se converte em adesão, mas em fonte de significado para a vida e em ajuda para a compreensão do mistério do viver.