A página da Paróquia de São Francisco Xavier vai apresentar diariamente textos para reflexão neste período conturbado da pandemia.
O texto de hoje é parte de uma entrevista a Philip Gröning, realizador do filme O Grande Silêncio,após uma visita à Cartuxa de Évora.
“Também vos deixastes seduzir?”
Entrevista a Philip Gröning, aquando da visita à Cartuxa de Évora
Philip Gröning, realizador do filme O Grande Silêncio, que mostra a vida dos monges da Grande Cartuxa, em Grenoble, visitou a Cartuxa de Évora antes do lançamento de “O Segredo da Cartuxa” (edição Pedra da Lua), de Paulo Moura e Nacho Doce. Entrevista ao realizador, que comparou os dois mosteiros e falou entusiasmado do livro.
Público (P)
O que o faz correr para esses lugares? Procura Deus?
Philip Groning (PG)
Sim, procuro Deus. No início, queria fazer o filme e procurava um lugar para o fazer. Agora, em visita, isso traz-me a recordação do que foi viver no mosteiro – uma experiência muito boa e muito forte, e que se deseja ver começada noutro mosteiro. Mas não sou turista de mosteiros.
(P) É realizador, quis fazer um filme para dizer o quê às pessoas?
(PG) Um filme conseguido abre o espaço às pessoas para que encontrem a sua própria questão. Um filme que é verdadeiramente bom não diz isto ou aquilo, isso é idiota, mas um filme bom coloca-nos num campo de tensão entre o silêncio, o barulho, o ritmo, a ausência das palavras, a ausência de Deus, a presença de Deus, e cada um pode procurar o seu caminho por dentro.
(P) No filme há duas seduções: a do realizador por este tipo de vida e a que se sente nos monges pela fé e por Deus. O filme foi também para falar dessas seduções?
(PG) Eu coloquei uma frase [bíblica] no filme sobre a sedução [“Tu me seduziste, Senhor, e eu deixei-me seduzir”]. A sedução é uma palavra que tem um significado diferente conforme os países. Na América, é uma coisa muito má, na Alemanha é muito bela, ser seduzido é mesmo uma das coisas mais belas. Para mim, essa frase traduz a sedução positiva, no sentido de uma pessoa se abandonar a qualquer coisa e abrir-se completamente a uma influência, de se abrir um espaço da alma ao que vem do mundo e da vida. Para mim, é uma das coisas mais importantes para viver e para ser feliz, abrir-se nesse sentido, deixar-se seduzir.
(P) Qual é a sedução, no mundo veloz em que vivemos, de um tipo de vida como esta, quase inútil, pois eles não dão nada à sociedade?
(PG) Felizmente. Mas eles dão qualquer coisa. É um pouco como um farol que não está lá para irmos ao encontro dele, mas para sabermos que, onde se vê luz, há terra. A função dos monges na sociedade é antes mostrar que – vocês como jornalistas, eu como realizador ou alguém como advogado ou operário – podemos mudar a nossa própria concepção do que é um ser humano, quando sabemos que esta é também uma decisão que se pode tomar e ser-se feliz com ela.
De repente, vê-se de forma diferente a nossa função como ser humano. Vemos, por exemplo, que não é necessário ser-se útil para se ser feliz. Não há nenhuma relação racional entre essas duas coisas. É complicado, mas a sedução de uma vida como a deles está em que se trata de uma vida incrivelmente radical e totalmente concentrada numa verdade. No seio de todas as religiões há sempre a busca de uma verdade absoluta. E isso é muito sedutor, hoje, porque o que é sedutor permanecerá sempre sedutor. Há também a grande sedução de não deixar que o tempo seja ocupado pelos aspectos consumistas da sociedade, que são sobretudo considerações de medo: Será que estou suficientemente bem vestido? Será que ganho dinheiro suficiente? Comprei o Mercedes certo ou um Mercedes que não é nada cool? Tudo isso é desperdício de tempo. A sedução deste tipo de vida é que ele dá a liberdade de esquecer tudo isso e dá verdadeiramente tempo para pensar o que fazemos na vida.
(P) Há uma frase no filme que diz: “Em Deus não há passado, só presente.” Mas esta é uma ordem sobretudo do passado…
(PG) É o velho monge cego que diz isso, em relação à morte. Ele não receia a morte, porque vem imediatamente a vida do além, porque o tempo só existe para nós como seres humanos. Mesmo para nós, existe de um modo muito contraditório. A única coisa que existe verdadeiramente é o presente e todas as outras coisas são objectos de memória. Mesmo a concepção do futuro: a imagem que se tem está numa recordação. O que ele quer dizer é que a única coisa que existe é o presente.