A página da Paróquia de São Francisco Xavier vai apresentar diariamente textos para reflexão neste período conturbado da pandemia.
O texto de hoje é de D. Tolentino Mendonça.

Um Pai que se torna nosso

D. Tolentino Mendonça

A oração do “Pai-nosso” devia sobressaltar-nos. Habituámo-nos tanto a conviver com o “Pai nosso”, que corremos o risco de lhe atenuar o sentido.
Os primeiros que ouviram Jesus dizer “Abbá” sentiram o oposto disso, pois reconheceram-se diante de um facto singular e novo: havia Alguém que chamava “Pai” a Deus.
Outros ouvintes terão certamente julgado isso escandaloso, um modo inaceitável de rezar. Porquê? Por que é mais fácil ver Deus a partir de fora. Deus grande, transcendente, poderoso, libertador, mas sempre observado a partir da exterioridade.

A viragem que Jesus de Nazaré introduz é considerar Deus a partir de dentro. Jesus apresenta-Se como o Filho de Deus. E a relação que mantém com Deus é uma relação filial. Isto é, Jesus vem dizer que Deus O impregna profundamente a ponto de Ele ser Filho e Se descobrir como tal.
Repare-se na intensidade do testemunho que Jesus dá: «Disse-lhe Filipe: «Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta!» Jesus disse-lhe: «Há tanto tempo que estou convosco, e não Me ficaste a conhecer, Filipe? Quem Me vê, vê o Pai. Como é que Me dizes, então, ‘mostra-nos o Pai’? Não crês que Eu estou no Pai e o Pai está em Mim? As coisas que Eu vos digo não as manifesto por Mim mesmo: é o Pai, que, estando em Mim, realiza as suas obras. Crede-me: Eu estou no Pai e o Pai está em Mim» (Jo 14,8-11).

Tal como muitas vezes fazemos coisas e não sabemos bem porquê, – é por causa da imagem do Pai que trazemos dentro de nós e com a qual estamos a dialogar. Ora, Jesus faz isto com o próprio Deus. Tudo Nele era marcado por esta consciência da Sua filiação. Ele podia realmente chamar a Deus “Abbá”, recuperando o tratamento que uma criança dá ao seu pai, tratando-o por “papá”, por “paizinho”. Não por uma dependência infantil, mas por um exercício amadurecido e provado de relação filial.

Quando Jesus diz “Pai nosso”, “Abbá nosso” , Jesus quer dizer que Deus é o Deus de todas as horas, Aquele em quem se pode confiar, como uma criança confia no pai sem qualquer tipo de reservas, sem qualquer tipo de escondimento, de uma maneira absoluta, e com uma abertura total. Deus é Aquele a quem podemos pedir “Preciso da tua mão”, “Dá-me a tua mão” e saber que Ele a estende, que Ele cuida, acompanha, protege, faz-Se tudo para nós. Dizer “Abbá” implica que eu também me queira colocar com a simplicidade de uma criança diante de Deus.

Ele desejou que chamássemos “Pai nosso” ao seu próprio Pai

O Baptismo não nos torna adeptos, simpatizantes, servos ou militantes de Jesus. Nem nos faz descobrir Jesus apenas como uma personalidade extraordinária que marcou a história para sempre, fixando-nos numa admiração de espectadores em relação a Ele. Para retomarmos uma das mais belas expressões do Novo Testamento, que é utilizada na Carta aos Hebreus, podemos dizer que o Baptismo nos torna companheiros de Jesus Cristo.

Jesus quando falava de Deus nunca dizia o “nosso Pai”. Com frequência fala, sim, de Deus como “o Meu Pai”, ou então “o Pai do Céu”. Mas, ao ensinar o “Pai nosso” aos discípulos, Jesus diz “Pai nosso”, como que a querer explicitar o mistério de comunhão que nos traz unidos a Ele.
Ao rezarmos o “Pai nosso”, estamos realmente a participar de Cristo. O Seu ser, o Seu caminho, o Seu estilo tornam-se os nossos, porque o “Seu Pai” é o “nosso Pai”.
Isto é, partilha connosco a sua arquitectura vital e interior, a sua ossatura interna, Aquele para o qual Ele continuamente Se volta.

Percebemos, a esta luz, melhor algumas passagens fundamentais dos escritos de São Paulo. Primeiro em Romanos: «Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus, são filhos de Deus. Com efeito, não recebeste um espírito de escravos, para recair no temor, mas recebeste um Espírito de filhos adoptivos, pelo qual chamamos “Abbá, Pai”.

Mergulhados na Páscoa de Jesus, somos chamados a viver do Seu Espírito, configurados à Sua realidade. Não permanecemos servos, nem escravos, mas tornarmo-nos verdadeiramente filhos de Deus e agirmos no mundo como tal.
Porque não há outra maneira de ser cristão. Não há outra maneira de tornar o Reino presente no mundo, se não for a partir de dentro, impregnados, transfigurados por Deus, vivendo de Deus e de Deus só. Não há outra maneira.

Que maravilha escondem as palavras “Pai nosso”. Escondem o mistério da nossa filiação em Cristo. Fomos feitos filhos no Filho de Deus. Entramos por Jesus no mistério do próprio Deus, no coração da Trindade Santíssima. Os nossos nomes estão escritos no coração de Deus. É Cristo que nos ajuda a dizer “Pai Nosso”. Sozinhos não éramos capazes de rezar, não saberíamos dizer que Deus é nosso Pai. Não saberíamos…

Foi o que Jesus nos veio revelar. Todo o cristão é uma consequência de Cristo e não há oração cristã que não reclame uma origem e uma chave cristológica fundamentais. É por que Jesus nos carregou nos seus ombros de Bom Pastor, correu ao nosso encontro, não desistiu de nos reencontrar…
É por que Jesus se pregou no corpo da nossa ignorância e da nossa fragilidade…
É por que Jesus suportou sobre si o peso dos nossos pesos… que nos revelou quem éramos.
Na nossa fragilidade não teríamos força, nem sabedoria para dizer que Deus é nosso Pai.
É exactamente por que Jesus Se amarrou a nós, que podemos rezar “Pai nosso”.
E por isso o “Pai nosso” é também o contrário da solidão. É Jesus quem nos faz descobrir, em todo o tempo, o mistério do amor de Deus. Se, por vezes, ao rezar o “Pai nosso” a nossa voz é débil, o nosso ânimo titubeante, e a nossa prece é um sofrido murmúrio, acreditar que Ele está connosco dá-nos a força necessária.

Somos uma coisa só

Lapidares na sua clareza são as palavras de São Cipriano sobre o Pai-Nosso: «A nossa oração é pública e comunitária, e quando rezamos, rezamos por todo o povo, não apenas pelo indivíduo, por que todos formamos uma coisa só».
E, no mesmo registo, se alinha a meditação contemporânea do poeta Charles Péguy: «É necessário salvar-se conjuntamente, precisamos de chegar juntos ao Paraíso, precisamos apresentarmo-nos juntos no Paraíso. É necessário pensar nos outros, é necessário doar-se aos outros. O que é que Deus nos dirá, se chegarmos ao Paraíso sem os outros?».

Ora todos estes trechos, de São Cipriano a Péguy, antes de se estenderem a cada um de nós, adaptam-se a Jesus. Ele foi exactamente Aquele que não Se quis salvar sozinho, mas com os outros. Quis doar-Se, não quis entrar sozinho na Glória. Quando entrou no Paraíso fê-lo como Primogénito, isto é, como cabeça, como primeiro, como protótipo.
Ao recitar o “Pai nosso” somos chamados a viver uma aventura que Jesus quis que fosse assim: partir da nossa experiência humana e comum, do nosso viver ferido para descobri-Lo companheiro como Ele foi companheiro dos discípulos de Emaús naquele entardecer, que é ainda o nosso.