A página da Paróquia de São Francisco Xavier vai apresentar diariamente textos para reflexão neste período conturbado da pandemia.
O texto de hoje é uma homilia do Pe. António Martins, da Capela do Rato, Lisboa.

Uma única humanidade em Cristo

Pe. António Martins, Capela do Rato

Um silêncio invade as nossas ruas e a nossa própria consciência. As nossas cidades cosmopolitas ficam desertas. A vida económica reduzida ao mínimo; as actividades culturais, eclesiais e escolares suspensas. Nós todos, recolhidos em nossas casas, tentamos agora reorganizar a vida, dar continuidade às actividades pelo tele-trabalho, pelas vídeo-aulas, a que se junta a vida da casa, o cuidado dos filhos, dos pais, dos avós, dos doentes.

O espaço familiar concentrado, apertado, pode ser explosivo. Todo o cuidado é pouco connosco mesmos, com os mais próximos, para que o veneno das tensões e das acusações não mine as relações afectivas e familiares. Não temos apenas de nos preservar do contágio, temos também de cuidar da nossa saúde relacional, emocional, mental e espiritual. Tantas frentes, tantos desafios ao mesmo tempo. Podemos vacilar, mas vamo-nos ajudar uns aos outros a manter uma rede intensa e cuidada de afectos, de estímulos, de encorajamento, de confiança.

Todos precisamos de cultivar o diálogo, a partilha de tarefas, tempos de humor e de divertimento. Precisamos de estar informados, mas precisamos também de nos proteger do bombardeamento informativo e da saturação das redes sociais. Saibamos aproveitar este tempo de isolamento para cultivar um profundo silêncio interior, tanto quanto a vida de uma casa cheia agora nos permite.

A elaboração do sentido de tudo o que estamos a viver faz-se no diálogo e na partilha de uns com os outros (há histórias e experiências a contar, medos a verbalizar), mas faz-se também nos processos pessoais de profundo recolhimento, de silêncio interior. É nesse recolhimento interior que a nossa consciência se alarga e se ilumina. O mundo novo que desejamos, após o coronavírus, não virá depois, começa já hoje.

Tudo o que vivemos, cada gesto, cada situação, cada emoção, cada reacção diz uma verdade de nós mesmos, no presente, a ser acolhida e interpretada na fé, na nossa relação com Deus, que está presente em tudo o que experimentamos. Deus une o que nos parece dividido, une-nos todos, em Cristo, numa única humanidade. O isolamento e o jejum das relações, dos encontros e da comunidade, sendo caminho duro de deserto, não seja desperdiçado.

Podemos crescer no conhecimento de nós mesmos, na relação com os que estão próximos, na atenção aos que estão longe, numa oração pessoal mais intensa, onde presentes a Deus e celebrando a sua presença, procuramos reunir e unificar estes tantos pedaços de vida rasgada, estas fracturas na sociabilidade. Assumir e atravessar na fé essa passagem pelo desconhecido, pelo imprevisível, com ousadia, criatividade, resistência e inteira confiança, é tarefa pessoalíssima, que não podemos delegar.

Cada um de nós vai fazer a sua travessia interior pelos acontecimentos, dar-lhes um sentido. Este é o nosso Mar Vermelho que vamos atravessar em conjunto, e cada um por si.
Na ausência do pão eucarístico, alimenta-nos o pão da Palavra. Seguimos o Evangelho de João que marca agora o ritmo da Igreja a caminho da Páscoa. (…)
Jesus aponta outro horizonte, o da misericórdia de um Deus que entra na paixão da nossa humanidade. Todas as circunstâncias, todos os acontecimentos são sinais da sua presença que sempre nos acompanha. Podemos ver nos dramas da vida e da história «manifestações» da graça de Deus: a bondade e a solidariedade entre as pessoas, esta unidade no perigo, esta comunhão profunda na dor, esta capacidade de lutarmos por uma causa comum, a confiança e a esperança que nos fazem resistir, a capacidade de nos transcendermos no meio da prova. Porque o bem da Humanidade é a glória de Deus. Essa é a ousadia criativa da fé: identificarmos na complexidade do que estamos a viver sinais da presença de Deus e de esperança. (…)

A urgência do presente transporta o grave apelo a um acordar da cegueira e da embriaguez alucinada em que todos estávamos a viver, da superficialidade das relações, da vertigem do consumo, do exacerbado individualismo reinante, da lógica dominante do lucro imediato, da arrogância de uma vontade de dominar tudo e todos. O drama do tempo presente devolve-nos ao realismo da nossa finitude. Somos convocados a crescermos juntos em humanidade, a valorizar a simplicidade, a aceitar a nossa vulnerabilidade. (…)

Vivemos tempos difíceis a exigir de todos nós cadeias de solidariedade, de partilha, de compaixão e de consolo. (…) Muitas famílias com fracos recursos ficam sem apoios; noutras aumenta a instabilidade económica com o encerramento de postos de trabalho. Muitos idosos isolados têm dificuldades acrescidas no acesso à saúde, a medicamentos, a bens essenciais.

Os sem-abrigo não têm casa para se isolar. Muitas redes de ajuda e de partilha, com o encerramento dos restaurantes e das lojas, cessam de existir. Muitos voluntários regressam também a casa. Ao risco de morte real acrescenta-se o risco de morte social. Os mais vulneráveis são também vítimas colaterais do vírus. Possa o estado de emergência tornar-se (e tornar-nos) num estado de urgência solidária e fraterna.

Se este nosso tempo presente é de risco, é também de promessa. Procuremos encontrar e activar a esperança no medo, a cooperação no isolamento, a vida na morte, o encorajamento no desânimo e na exaustão. Esta é uma hora densa da nossa história contemporânea. É a hora da nossa reinvenção pessoal e comunitária, como nações e como humanidade global. Esta é uma oportunidade para um acordar de consciências.
Como nos apela Paulo: «Desperta, tu que dormes».