A página da Paróquia de São Francisco Xavier vai apresentar diariamente textos para reflexão neste período conturbado da pandemia.
O texto de hoje é de Sergio di Benedetto.

O silêncio de Deus

Sergio di Benedetto in L’Osservatore Romano

«O silêncio de Deus dissolveu as minhas certezas como neve ao sol. As palavras que colocava nele rebentaram como bolas de sabão. Encontrei-me nu e mudo, transtornado, à beira de uma ausência. Sobre uma aresta entre nascimento e morte, entre origem e fim.»

Estas palavras, escritas por Raphäel Buyse, acompanharam-me durante as semanas de quarentena, juntamente com outras de igual radicalidade que tecem as páginas de “Autrement, Dieu”. Trata-se de um livrinho ágil, mas de grande intensidade, no qual o autor, sacerdote francês, narra a experiência radical de espoliação interior vivida durante um período de crise pessoal.

Sacerdote brilhante, mas consumido por uma hiperatividade pastoral que o conduz a perder-se a si próprio, Buyse decide retirar-se durante três anos para o mosteiro beneditino de Clerlande, a poucos quilómetros de Bruxelas.
Quando bate à porta dos monges, o P. Raphäel dá-se conta de que o Deus em que até então tinha acreditado era um Deus demasiado exigente, demasiado desumanizador, feito à imagem de si próprio: «Tinha-o vinculado aos meus desejos e aos meus sonhos; tinha-o confundido com os fantasmas provenientes do profundo da minha fragilidade; construí-o como uma resposta que preenche a minha solidão. As imagens que fazia dele confundiam-se com as de mim próprio».

Até então tinha procurado Deus «para além do humano», como se Ele pretendesse o sacrifício da humanidade de quantos querem ser seus discípulos. Esmagado entre a busca da aprovação dos outros e um serviço a um Deus sufocante, Buyse põe em causa tudo aquilo que até então tinha sido a sua fé. Entre os claustros de Clerlande, intui que perdeu a rota no «frenesim de edificar pedra sobre pedra um templo-igreja que Deus talvez não espere tão-pouco de nós».

Está aqui uma das chaves-mestras do seu caminho: o Deus cristão não é um Deus que armadilha o ser humano com expetativas cada vez maiores, mas é um Deus da liberdade, do gratuito, da paz, um Deus «que se retira como o mar. Amável na sua ausência». Porque Buysce faz a experiências (tantas vezes narrada pelos místicos) do silêncio de Deus, esse silêncio capaz de escavar na profundeza, inclusive de descarnar, destruindo certezas consolidadas como se fossem simples «bolas de sabão».

Após a noite da alma, Buyse experimenta o surgimento da aurora sobre uma fé nova, sobre uma vida nova: «Depois de Clerlande, balbucio a minha fé num Deus que não espera nada do ser humano, que dele se desapegou e o deixa existir». Esta é uma das grandes intuições do sacerdote: não existe dicotomia entre Deus e ser humano, porque Deus quer «a unificação profunda da pessoa». Deus não nos quer apesar da humanidade que nos caracteriza, mas ama-nos por aquilo que somos, por aquilo que transportamos na nossa vida. É uma certeza que aplaca o tumulto interior: «Então abandonei as perguntas sem resposta, e sobretudo as respostas sem pergunta».

Entre os claustros do mosteiro, seguindo a sabedoria da regra beneditina, o P. Raphäel desmobiliza o exército do seu ego. Compreende que a via a empreender para encontrar o Deus do Evangelho é a de viver a sua humanidade em plenitude, vencendo as tentações de amputar partes de si como se fossem desagradáveis a Deus; dá-se conta, com efeito, que há pessoas que «se concentraram em Deus para remover a questão do ser humano: a busca de Deus pode tornar-se uma forma de demissão da existência».

O Evangelho narra um Deus incarnado. Um Jesus de Nazaré que «unifica a vida daqueles que seguem os seus passos». Um Cristo que salva. Mas de quê? «Da desumanidade e da cisão (…). Se nos salva, é da escassa fé que temos na vida, nele, na sua presença. Da nossa indiferença, dos fechamentos, das escleroses do coração que nos impedem de viver. Se nos salva, é do pânico, do medo de um Deus apresentado como alguém que nos quereria fazer pagar o direito de viver». Jesus de Nazaré liberta o ser humano: «Se Cristo nos liberta, é das certezas nas quais o fechámos; é das catequeses com o selo de garantia, das fórmulas mágicas e daqueles pequenos ritos que por vezes afloram a nevrose. Se nos liberta, é da religião que legitima muitas formas de poder e influência. É do sentido de culpa que envenena a existência e impede de viver, dançar, amar».

«Os rebeldes do Espírito são mais obedientes dos que os sábios filhos da lei», porque «sem eles a Igreja seria uma velha instituição estagnada»

A um Deus assim, então pode-se consentir. Porque de um Deus assim, que ama o ser humano inclusive na sua carga de fragilidade, que ama gratuitamente sem esperar seres humanos perfeitos, pode confiar-se. Mas fiar-se de Deus quer dizer também fiar-se da vida, habitando-a com serenidade e liberdade, com coragem e responsabilidade.
Por isso Buyse, após três anos, deixa Clerlande: compreende que o seu lugar não é no mosteiro; sente que deseja voltar ao mundo, cujas estradas têm de ser percorridas com consciências novas, com esperanças renovadas, mas sobretudo com a alegria simples que sabe valorizar o “aqui e agora”, sem angústias pelo futuro e sem pesos do passado. Viver assim significa «salvaguardar momentos de recolhimento», defender instantes de solidão, significa «estar, simplesmente, aonde a vida nos levou». Redescobrir o valor do hoje, evitando corridas loucas que não se controlam e que consomem a vida.

São pensamentos que caem como bálsamo no tempo da pausa forçada, quando tendemos entre um legítimo desejo de voltar a percorrer as nossas cidades e o perigo de voltar à habitual corrida do quotidiano que devora tempo, relações, reflexões, oração.

O importante, diz Raphël Buyse, é ter a coragem de colocar perguntas radicais à vida, de pôr-se a caminho e avançar com pequenos passos, mas avançar sempre, porque «para se tornar humano é preciso manter-se em caminho, não ficar imóvel».

Assim se descobrirá o rosto de «Deus diferente», um Deus mais humano, um Deus que salva e liberta já no presente. Um Deus diferente que poderia ser o dom destes dias de silêncio, de reflexão e de esforço.