A página da Paróquia de São Francisco Xavier vai apresentar diariamente textos para reflexão neste período conturbado da pandemia.
O texto de hoje é de Américo Pereira, da Universidade Católica Portuguesa.

O Bem-comum: o único caminho propriamente humano

Américo Pereira, Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas

 

Em termos cristãos, a única realidade politicamente aceitável é o bem-comum.

Todas as outras formas, por maiores que sejam as suas virtudes, como não contemplam necessariamente o melhor bem possível e a sua necessária concretização para todos os seres humanos, não são suficientemente perfeitas para que possam obedecer ao mandamento da caridade como indelével imperativo.

O sentido divino de que «tudo é bom», «tudo é belo» presente nos sete sucessivos finais de dias de criação divina do ser do mundo, a partir não do nada, mas do infinito amor de Deus, manifesta precisamente que a bondade do acto criador se espraia universalmente em todas as criaturas, sem excepção, a todas ligando não como coisas de vizinhança – é esta a ideia comum, que as coisas estão ao lado umas das outras, assim, sempre, desligadas fundamentalmente –, mas como coisas amadas por Deus e ligadas por esse mesmo amor que as ergue, não por uma relação espacial, pois o espaço apenas divide, não liga: a sua função é precisamente, como criatura, marcar a diferença e a não-confusão entre os corpos.

Em termos humanos, a ligação entre os diferentes seres humanos acontece através do que, no mesmo ato, constitui a sua pessoalidade como ato completo: através da relação, que é comunicação de pessoa a pessoa.

A relação entre as coisas dá-se através do movimento espacial, em que se aproximam e afastam, segundo princípios naturais.
A relação entre os seres vivos acontece também segundo este modo, mas acrescentando a diferença constituída pela inteligência própria de cada ser, que lhe permite seguir novos princípios que escapam, por exemplo, ao puro seguimento mecânico das três, assim chamadas, «leis de Newton».

Neste sentido, os vírus são os seres proporcionalmente mais inteligentes, pois mais não são do que um programa de replicação de vida com uma carapaça protectora: uma inteligência na forma de escrita de um programa material auto-replicativo, que é, ao mesmo tempo, a forma mais primitiva de inteligência, mas a mais eficaz, como se percebe quando há epidemias virais.

No entanto, esta inteligência não pode escolher autonomamente, limitando-se a ser automaticamente o que é, mesmo quando muta, isto é, mesmo quando há modificações aleatórias no que é como programa inteligente operativo.

Os seres biológicos mais complexos, cada um a seu modo quer específico quer individual funcionam analogamente ao modo do vírus, se bem que com um nível de complexidade diferente, o que se reflecte numa eficácia também diferente.

No entanto, todos os seres necessitam de interacção para poderem ser: no mínimo necessitam da interacção a que chamamos «causalidade» e que manifesta o facto de haver um constante e ininterrupto movimento metamórfico no seio de todos os seres, o que o velho Heráclito denominava de movimento incessante que não permitia repetição.

No que diz respeito ao âmbito do ato humano universal e de sempre, a relação dá-se na forma quer da inteligência, ao modo dos outros seres não-humanos, quer através de formas de inteligência que os outros espontaneamente não possuem, como é o caso da inteligência intelectual, essa que nos dá isso que é o sentido «das coisas», na forma não apenas de uma espécie de retrato instantâneo do real, mas como possibilidade, como finalidade, apenas presente como possibilidade: é a realização possível intuída do ato pleno de cada coisa que cai sob a nossa inteligência que constitui o sentido de cada coisa.

Ora, na relação entre as pessoas é precisamente este sentido como absoluto de possibilidade próprio de cada pessoa presente à nossa inteligência que a constitui como pessoa na relação connosco, isto é, que me permite reconhecer nela um sentido próprio possível, seu, inalienavelmente seu, sem que possa ser reduzido a algo de diferente sem que, por meio de tal redução, elimine essa pessoa no que de mais profundo possui, a sua possibilidade.

É este o sentido substantivo de «pessoa»: que é uma realidade própria constituída por um sentido próprio a nada redutível, que encerra todo o seu bem possível.

Todavia, como tal apenas se dá na relação com outras pessoas, pois apenas nesta relação pode a pessoalidade de cada uma ser reconhecida, então, de cada pessoa faz parte a possibilidade de bem de todas as outras, em entre-reconhecimento e entreacção. Tal reconhecimento e tal acção constituem o que é o bem-comum.

Sem este reconhecimento e esta acção não há humanidade, apenas um conjunto de seres biológicos que mais não são do que mais uma espécie humanamente indiferenciada.

Note-se que se pode pensar numa espécie biologicamente semelhante à humana, mas sem esta entreactividade de bem-comum. Ora, uma tal espécie não seria humana, apenas teria uma semelhança física com a humanidade, mas nada mais.

Não é, pois, a mera biologia que nos confere humanidade, mas o acto em que nos reconhecemos como mutuamente humanos, não apenas como ato de inteligência, ao modo dos vírus – que sabem bem a que parasitar –, mas na forma de ato de inteligência que quer o bem do outro. A esta inteligência que ama chama-se formalmente «pessoa». A pessoa é a comunidade, pois, a existência de uma pessoa implica imediatamente a existência da comunidade.

Américo Pereira
Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Ciências Humanas