A página da Paróquia de São Francisco Xavier vai apresentar diariamente textos para reflexão neste período conturbado da pandemia.
O texto de hoje é de D. Carlos Azevedo.
O vigor interior da Páscoa 2020
D. Carlos Azevedo
As circunstâncias especialmente difíceis em que neste ano se apresenta a Páscoa não impedem de a celebrar.
Quando alguém está doente e não pode deslocar-se à Igreja, por motivos de força maior, não deixa de viver a Páscoa. Quando as comunidades cristãs, nas terras de missão, estiveram dezenas de anos sem padre, não ficaram impedidas de viver a Páscoa por ausência de celebrações.
Para já não falar dos muitos católicos de nome, que nestes dias iam de férias e nunca souberam o que é uma adoração da cruz ou vigília pascal!
As liturgias plenas de sinais e beleza, especialmente no Tríduo Pascal, constituem uma ajuda para tornar expressiva a fé e dar visibilidade aos nossos sentidos. A nossa humanidade precisa de símbolos e da celebração comunitária para experienciar a interioridade.
Este ano, ocorre recordar que morada de Deus é cada cristão e todos são a Igreja de Deus. O importante, portanto, não é a sedução pelo sacro, mas a conjugação entre as formas litúrgicas e um culto em “espírito e verdade”. Jesus afirma que é na amizade com os “seus”, até à entrega pascal da vida, que se manifesta a verdadeira comunhão com Deus. A nua exposição sobre a cruz é a extrema realização da obra da revelação de Deus. Aí está exposta nuamente toda a verdade de Deus, do ser humano e do mundo. Isto é paradoxal, é escandaloso, contradiz o sentido religioso espontâneo.
Em Deus não há outro mistério, se não o da verdade do amor, verdade do tecido das relações que o amor fecundamente compõe, nada mais do que a liberdade da dedicação e do cuidado com o amado, mistério de uma palavra sempre nova, na surpreendente fantasia do diálogo amoroso.
A necessidade humana de localizar o próprio Deus, estabelecer lugares para o encontrar contrasta com a impossibilidade de estabelecer um lugar para um Deus que é itinerante com o seu Povo, como experimentava o antigo povo de Deus. De facto, para a fé cristã a presença de Deus na história é o corpo de Cristo, porque nele Deus fez-se carne. Os discípulos de Jesus, a Igreja, são o santuário vivo onde Deus está presente.
O Deus de Jesus não é um ser distante, longínquo, com quem há uma relação intransponível, um muro inseparável. Não só não podemos enclausurar Deus dentro de uns muros, circunscrever-lhe um espaço, ficando o resto um terreno profano, onde Deus não passa, mas também não há muros entre nós e Deus, porque em Jesus Ele veio habitar entre nós. Este é o projecto do Pai que, por Cristo, derrubou os muros da sua distância e acolheu toda a criação como lugar da sua presença para a construção do mundo novo.
Cristo foi ao culto na sinagoga, mas realizou a salvação fora destes muros. Jesus realizou intervenções salvíficas indo às casas das pessoas.
Jesus sai e vai ao encontro dos esposos nas Bodas de Caná e provoca nos discípulos a primeira atitude de fé e forma-se a pequena comunidade crente. Jesus é convidado para comer em casa de um chefe dos fariseus, na narração de Lucas, e, perante a frieza e a falta de hospitalidade dos que o convidam, acolhe o gesto da pecadora que banha os seus pés com lágrimas e os enxuga com os cabelos. Também o encontro com Zaqueu evidencia como é em casa o lugar para o anúncio e para a comunicação da salvação. Para a última Ceia Jesus escolhe uma casa preparada e bela.
Para os primeiros cristãos o lugar da salvação e do culto, do encontro com o ressuscitado, não era o templo, mas a casa onde se reuniam. O lugar do culto é a assembleia reunida, seja onde for que se reúna. Esta realidade teológica não se opõe a uma necessidade antropológica de um espaço próprio como lugar da celebração litúrgica.
O edifício-igreja exerce uma mediação sacramental para a experiência religiosa. Se as pedras vivas se reúnem no espaço religioso é para purificar a vida e levar para a sociedade o projecto de Deus. As pedras vivas da Igreja não são muro que separa ou fortaleza fechada. Cristo rompeu com esses muros. É por isso óbvio para o cristão que da celebração da fé decorra a atenção aos problemas reais do dia-a-dia: os pobres de pão e de cultura, os doentes, os aflitos, os que já partiram ou vivem na angústia do futuro.
A liturgia cristã não é um ideal de vida, muito solene e ritualista. Não há muro entre liturgia e vida: há uma única igreja que se simboliza nas formas de um espaço e se transfigura no amor sempre reinventado e sem limites de oblação. O Espírito Santo transforma os sinais sacramentais e transforma cada pessoa em nova criatura.
Uma consequência da animação realizada pelo Espírito é fazer a Igreja ouvir os apelos que lhe vêm de fora: do mundo sofredor e ferido, das tradições religiosas variadas. Os critérios do anúncio missionário nunca fogem às circunstâncias históricas. É pela iluminação do Espírito Santo que se podem descobrir as orientações da sociedade actual, reconhecer as suas necessidades espirituais mais profundas, determinar as tarefas concretas a promover no atribulado pós-pandemia.
Assim, temos em 2020 uma ocasião para celebrar espiritual e intensamente a Páscoa de Jesus e a nossa Páscoa, a Páscoa a que esta situação obriga e impele a sociedade contemporânea.