A página da Paróquia de São Francisco Xavier vai apresentar diariamente textos para reflexão neste período conturbado da pandemia.
O texto de hoje é de Enzo Bianchi.

Também vós quereis ir embora?

Enzo Bianchi

O que de Deus é escandaloso é a sua humaníssima condição, o seu entregar-Se numa carne frágil e num corpo mortal a carnes frágeis e corpos mortais, isto é, aos seres humanos. Como é possível que Deus Se entregue num homem, «o filho de José», uma criatura humana que pode ser entregada, traída, dada em mãos aos pecadores, como acontecerá precisamente por causa de um dos doze apóstolos, Judas, um servo do diabo?

Aqui a fé tropeça no dever acolher a imagem de um “Deus ao contrário”, de um “enviado divino, um Messias ao contrário”, que é frágil, pobre, débil e de quem os seres humanos podem fazer aquilo que quiserem… É o escândalo da incarnação de Deus, padecido ao longo dos séculos por muitos cristãos, por muitas Igrejas, pelo próprio islão, e ainda hoje pelos homens religiosos que acusam de não acreditar em Deus quem acolhe do Evangelho a mensagem escandalosa de um Deus verdadeiramente homem, carne mortal, em Jesus de Nazaré. A fé cristã torna-se facilmente negação da existência do corpo de Jesus, crendo-se somente no seu espírito, porque prefere, como todas as religiões, um Deus sempre e apenas omnipotente, um Deus que não pode tornar-se humano, como nós, em tudo excepto no pecado.

Por isso Jesus exerce pressão – «também vós quereis ir embora?» –, endereçando-se àqueles que permaneceram, poucos, na verdade. Jesus não teme, mesmo que sofra, ficar só, porque tem fé na palavra que o Pai Lhe dirigiu, na promessa de Deus que não faltará. Outros podem falhar, mas Deus permanece fiel! E assim o Evangelho regista que alguns discípulos, escandalizados pelas palavras e gestos de Jesus, se vão embora. Por medo? Por convicções religiosas? Em todo o caso, por falta de fé. Tinham acolhido a vocação, tinham seguido Jesus talvez com entusiasmo, mas depois, não crescendo na adesão a Ele, tropeçaram na incompreensão das suas palavras. Consequentemente, enveredaram por um caminho de “des-vocação”, contradizendo a estrada feita até então até voltarem para trás e irem-se embora.

Às vezes pergunto-me porque é que na Igreja não se tem a coragem de fazer ressoar ainda hoje esta pergunta de Jesus: «Também vós quereis ir embora?»; porque é que se ensina sempre o sucesso, se olha para o número dos crentes, se realizam esforços olhando para a grandeza da comunidade cristã e não para a qualidade da fé? Somos realmente gente de pouca fé! A crise, pelo contrário, que é sempre falhanço, afastamo-la o mais possível, dissimulamo-la, calamo-la, para que não se torne evidente que por vezes perdemos, caímos, falhamos, inclusive nas nossas actividades eclesiais e comunitárias, ainda que elas se conformem à vontade de Deus.

Por outro lado, Jesus usará a imagem da poda da videira para dizer que há ramos a serem podados; determinante, porém, é que a poda seja cumprida pelo Pai, não por nós e nem mesmo por aqueles que presidem à comunidade cristã ou nela trabalham como operários. Por si mesmo, o Evangelho tem a força de atrair e deixar cair: basta que seja anunciado na sua verdade e com franqueza, sem ser adocicado. Sim, o Evangelho é a Palavra da vida eterna, como Pedro responde a Jesus, confessando que a fé da Igreja é a fé no “Santo de Deus”, isto é, fé de que em Jesus há a Presença de Deus. Onde está agora Deus neste mundo? Não no Santo do templo em Jerusalém, mas na humanidade feita carne e sangue de Jesus, o Filho de Deus.

Perguntando a Jesus «Senhor, a quem iremos?», Pedro exprime toda a fé dos discípulos em relação a Ele, toda a sua unicidade de Rabi, Profeta e Messias; ao mesmo tempo, chega ao verdadeiro cume da sua profissão de fé: «Acreditamos e conhecemos que Tu és o Santo de Deus». Pedro manifesta uma experiência, um conhecimento por estar durante anos com Jesus: Ele é o Santo, como o tinha definido o anjo no anúncio a Maria («aquele que irá nascer será o Santo e será chamado Filho de Deus»).

Assim termina o longo e não fácil discurso de Jesus sobre o pão da vida. Chegados ao fim é provável que sejam mais as coisas que não chegamos a compreender, as realidades que não conseguimos sustentar, em relação àquele que compreendemos e acolhemos. Talvez também nós tenhamos embatido nestas palavras, não intelectualmente, mas no acolhê-las até as vivermos existencialmente, concretamente e diariamente.

Mas se, como os doze, não nos formos embora e permanecermos junto de Jesus com as nossas fragilidades, que dizem também respeito à fé, e tentemos perseverar no seu seguimento, isso será suficiente para acolher o dom gratuito e não recusá-lo ou menosprezá-lo: Jesus homem como nós, em quem «habita corporalmente toda a plenitude da vida de Deus», o próprio Deus, palavra que nos alimenta, pão da vida que recebemos na Eucaristia, no nosso caminho rumo ao Reino.