Para guardar no coração o que for mais preciso e precioso
P. José Frazão Correia, (excerto)
Chegam até nós dados, relatos e evidências de um mundo intoxicado, de modo que a toxicidade está presente em vários graus e em muitas dimensões das nossas vidas: afecta o planeta que habitamos, as construções sociais em que nos movimentamos, as relações que estabelecemos.
Focar no essencial, conhecer exemplos práticos de como descomplicar, promover a dimensão espiritual da vida e ir ao encontro da nossa verdadeira identidade para guardar no coração o que for, de facto, preci(o)so. Sair com o coração mais vazio do supérfluo, que é sempre o que está a mais e não serve para nada, excepto para pesar e atar o coração, e mais cheios do essencial, aquele necessário sem o qual não vivemos bem. Desintoxicar é um desejo bom e necessário, para nós que, de facto, vivemos tão intoxicados, tão cheios, tão saturados, tão sôfregos, tão dispersos. E, tantas vezes, tão vazios.
No Ocidente, o desejo de menos será consequência de termos demasiado: demasiada comida, demasiada informação, demasiadas experiências, demasiado divertimento, demasiadas possibilidades, demasiada sofisticação. Por isso, mesmo este desejo de desintoxicação pode revelar-se ambíguo. Se o desejo de menos caminha junto com a indisponibilidade para deixar o que quer que seja, colocar a questão da desintoxicação pode ser, ela mesmo, sinal de toxidade.
Efectivamente, queremos light, mas com o prazer fácil do fast food; queremos sem açúcar, mas continuando a beber refrigerantes; queremos sem gordura, mas continuando a comer batatas fritas; queremos saborear, mas de modo imediato e intenso – vale para a vida espiritual e para a liturgia, como para a música e a literatura; queremos uma vida mais simples, mas sem deixar qualquer comodidade. Queremos sol na eira, mas com chuva no nabal.
No entanto, como diz o Evangelho de Jesus, ‘quem quiser ganhar, há de perder’. Um jogo difícil de jogar, com regras dificilmente aceitáveis. Mas não estará aqui a chave mestra da arte de viver bem – querer menos, apenas o necessário e não mais do que o necessário, dispensando o supérfluo, para viver melhor?
Vivemos em contínuo movimento e em permanente comunicação; somos emancipados e autónomos, plurais e multifacetados, sensíveis e sensuais, desportistas incansáveis e cultores da saúde e do bem-estar. O nosso íntimo tornou-se, ele mesmo, um parlamento de partidos diferentes e contraditórios, que coexistem e coabitam no mesmo hemiciclo.
Vivemos tempos de possibilidades extraordinárias e de enormes contraditoriedades. Queremos liberdade sem limites e segurança garantida; queremos a privacidade, a par da comunicação sem restrições; somos adeptos da meritocracia, mas queremos o acesso gratuito a inúmeros bens; queremos viajar rapidamente, mas somos contra o ruído e a poluição dos aviões. Somos racionalistas e híper sensíveis, adultos e autónomos, mas com um quê de infantil e de mimado.
Depois, estamos profundamente marcadas pelo registo económico. A economia domina o sentimento e a sensibilidade que partilhamos, colonizando todos os outros campos, da política à cultura. Somos uma sociedade inventiva, que investe, que aposta no novo, que responde a tantas necessidades e procura activamente solução para tantos problemas.
Vivemos um tempo de enormes possibilidades: de comunicação, de relações entre mundos distantes, de uma cooperação económica que é capaz de superar conflitos políticos e históricos. No outro lado desta moeda, porém, tudo se transformou em linguagem económica, que, em si mesma, é voraz. Devora o espaço público e as relações e, na bolsa, tanto faz subir valores sem que se perceba o motivo, como desvalorizar vertiginosamente o que há bem pouco tempo valia tanto.
Essencialmente, somos tidos e comportamo-nos como consumidores que se consomem consumindo. Produzimos coisas em vista da sua perda de validade e de garantia. Consumimos experiências, consumindo-nos nelas. E temos que crescer, crescer sempre mais. Mas até onde, poderemos perguntar?
Somos seres também modelados fortemente pela publicidade, linguagem criativa que joga alegremente entre o mundo real e o mundo maravilhoso de todas possibilidades.
A publicidade sussurra necessidades e promete tudo – finalmente, totalmente, verdadeiramente – a custo de nada ou de muito pouco. Oferece o céu já nesta terra. Aquele perfume que recria o mundo e, finalmente, o torna desejável, feliz, perfeito. Mas pode garanti-lo? Vivemos em sobre-excitação, em excesso de conectividade, em consumismo.
A fasquia das promessas está demasiado alta, gerando, obviamente, pessoas deprimidas, desiludidas, enganadas. Porque um perfume é só um perfume e não mais do que um perfume. Na realidade, bem sabemos que um perfume não pode garantir o céu. Somos uma multidão de vítimas enganadas. Somos todos vítimas do sistema, das falsas promessas, dos mercados, dos vírus, da poluição. As letras pequeninas dos contratos, ilegíveis porque não são feitas para serem lidas, são o avesso realista dessas promessas fantásticas da publicidade. Em caso de insatisfação ou de litígio, desfazem a expectativa daquele produto poder realizar o que prometera. Não tutelam ninguém e protegem de qualquer responsabilidade quando chega a desilusão e a frustração.
O cuidado atento às linhas que nos cosem e aos ritmos da nossa humanidade gerará sobriedade e autenticidade de vida, que reforçarão e refinarão a sensibilidade pelo que é essencial, que é o que se distingue do supérfluo e do postiço.
Querer menos pode ser o caminho propício para viver humanamente melhor.
Quanto bastará para termos o necessário? Como distinguir o necessário do supérfluo? Poderemos guardar no coração o desejo de renunciar ao supérfluo para viver só do necessário?