Cuidar da vida frágil

José Tolentino de Mendonça, Expresso

Guardo em mim uma gratidão para com a enfermeira que, há uns anos, vendo a minha angústia por não estar a conseguir ajudar uma pessoa de família a encontrar o que então me parecia um equilíbrio psíquico ao seu alcance, me disse: “Perceba que isto não é ela, mas a doença dela.”

É verdade: levamos muito tempo a perceber o óbvio. Porque sabemos mais ou menos cuidar de nós próprios e sustentar a nossa autonomia, julgamos saber automaticamente cuidar dos outros. E não é assim. O cuidado requer, como tudo na vida, uma aprendizagem. Mas é um dado universal: todos podemos aprender.

O cuidado não é apenas uma espécie de técnica de manutenção. Certamente há uma dimensão técnica importante no cuidado, mas ele não se realiza humanamente sem a escuta, o reconhecimento do outro, a empatia, a solicitude, a participação ou a delicadeza.

No princípio do cuidado está a activação da nossa responsabilidade pelo outro. Como no seu oposto está a indiferença, o abandono ou o descarte.

Penso nos largos milhares de cuidadores (na verdade, de cuidadoras, pois as estatísticas dizem que mais de 60% são mulheres) que, entre nós, se ocupam dos pais ou familiares doentes, que tratam de jovens e adultos portadores de deficiência, acompanhando-os jornada após jornada.

Prestando atenção à toma dos medicamentos, preparando as refeições, ajudando-os a caminhar um pouco, estimulando-os com conversas, roubando para eles, de qualquer parte, pequenos fragmentos de azul e recebendo em troca cintilações que, na sua intensidade, se diria não serem apenas cintilações. Lutando muitas vezes, em solidão, para afirmar o valor da vida humana numa sociedade que em vez de simplificar os auxílios, burocratiza, distancia-se e dificulta.

Porém, não tenhamos dúvidas: é o cuidado a grande experiência humanizadora, o lugar do mundo onde mais aprendemos, o grande espaço de sabedoria autêntica. Sem a cultura do cuidado não haverá futuro e tudo representará sempre mais um beco sem saída. Há quem contraponha: “O cuidado só por si não oferece a solução.” A resposta é: pelo menos oferece caminhos.

A gramática bíblica traduz este debate num fundamental conceito, que em hebraico se diz tiqqun. O termo tiqqun, mesmo se inclui outros significados, é normalmente traduzido como “reparação” ou “restauração”. A história narrada na Bíblia não é uma história linear ou que escolha omitir a sua condição vulnerável, trágica e ferida.

Pelo contrário: os livros sagrados constituem documentos inapagáveis do sofrimento humano no tempo; contam avalanchas e razias, perdas de estatuto político e deportações, a dor dos prisioneiros e a mortificação incomensurável dos escravos; falam de doenças individuais, de infortúnios e desastres, de cercas sanitárias (como no caso da lepra) e de histórias clínicas agravadas. Mas na concepção bíblica a vida não se resume ao enredo niilista dos seus agravos. A vida é também prática e esperança de reparação. Ora, uma forma histórica de reparação devida à dor humana é precisamente o cuidado.

Em Portugal, com solavancos e atrasos, lá se chegou a uma das leis que correspondem efectivamente a um avanço civilizacional: a aprovação do Estatuto do Cuidador Informal. Estima-se que possam reclamar o direito a ele (porque, em concreto, já o exercem) cerca de 800 mil portugueses. Contudo, a lentidão dos processos administrativos e a escassa informação pública têm provocado uma ralentização inaceitável.

Até meio de Dezembro passado, o número dos cidadãos que pediu o documento de acesso ao estatuto não chegava aos 4 mil. E este facto torna ainda mais violenta e incompreensível a pressa em aprovar uma lei desumana como a da eutanásia.