Jesus não vai ao deserto por sua própria vontade, mas conduzido pelo Espírito, impelido por uma força maior. Ninguém vai ao deserto porque lhe apetece, ou porque foi convidado a fazer uma experiência. Vai-se porque não se tem outro remédio: há algo poderoso que nos puxa de nós e que, no final, nos fez compreender que temos de parar e pormo-nos, de uma vez por todas a escutar. Que temos de voltar a começar. Ou, simplesmente, começar de verdade, dado que todo o anterior foi um mero preâmbulo.

Este Espírito, a quem Jesus obedece com alegria, está representado no imaginário cristão por uma pomba. Todos temos uma pomba interior que nos guia para o nosso próprio centro. Claro que o caminho para esse centro não é sempre de rosas: essa pomba nem sempre nos conduz a lugares bonitos e agradáveis, mas também a sítios desagradáveis e até inóspitos que, por alguma razão que inicialmente não compreendemos, nos convêm.

O deserto, como imagem, é a outra face do jardim. Se no Éden, tudo é harmonia e prazer, no deserto, é onde o mal costuma apresentar-se. É compreensível: no mundo costuma haver demasiado ruído para que o mal se possa distinguir.

No deserto, ao nele não reinarem as pressas nem a confusão, é onde podemos desmascará-lo e até vencê-lo, afastando-o de nós durante uma temporada, quase nunca para sempre.

Encontrar-se com o obscuro, identificá-lo, é um presente do Espírito.
Nada o imaginaria à partida, mas dar-se conta das trevas que reinam no mundo e no nosso coração é o melhor indício de que o caminho espiritual começou.
A nossa biografia da luz começa com a consciência da sombra.

Não há nada sem obstáculos. Uma meta sem obstáculo não é uma verdadeira meta. Há sempre algo a conseguir, ainda que seja tão-só a consciência de que não há nada a conseguir. Uma missão dinamiza a pessoa, põe-na em movimento e na positiva tensão do cumprimento.
Seguindo o exemplo do seu primo João, para discernir bem qual é exactamente a sua missão e como realizá-la, Jesus afasta-se de tudo e de todos durante algumas semanas. Para não ser distraído por ninguém nem por nada, decide ir só e jejuar.

Solidão e sobriedade ajudar-me-ão no meu discernimento vital.
Como esta fase preparatória requereria, decerto, tempo, Jesus partiu sem data de regresso.
Todos os retiros deveriam ser assim: ninguém deveria voltar até ter cumprido o propósito que o impeliu a partir.

Alguém pode calcular que um discernimento ou uma purificação vão demorar-lhe uma semana, mas pode encontrar-se logo com o que necessita, ou – também é possível – que esse assunto que o levou ao deserto se resolva inesperadamente em poucas horas. O normal é que todos necessitemos de bastante tempo para limpar

A nossa biografia da luz começa com a consciência da sombra
Pablo D’Ors, In Biografía de la luz