Penitência forçada, confinamento pascal
Pe. José Frazão Correia, sj, excertos
A vida é bela. (…)Mas a vida também é tão difícil. (…)
Os limites que nos fazem insinuam desconfianças, despertam ciúmes, incitam a agressões e transgressões.
Aí, quando o custo encobre a bênção que a vida é, tendemos a afundar-nos, como se não houvesse mais nada, ou a evadirmo-nos, fazendo de conta, ou a agredir como forma de protecção.
Reaprender a professar a confiança elementar na vida, bendizendo a sua graça e atravessando com esperança o seu custo, sem rendição nem alienação, torna-se um dever de humanidade. E um dever de crentes. A profissão de fé em Deus está muito próxima da declaração de amor à vida. Tudo isto no quotidiano e no simples.
O extraordinário tem sido o nosso ordinário.
Não interromperemos nada. A “quaresma religiosa” chega, pois, quando já estamos saturados de uma longa e rigorosa “quarentena civil”. Há muito que nos estamos a privar de encontros à mesa. Cancelamos festas e celebrações. Não nos abraçamos nem beijamos. Passámos a vestir roupa de trazer por casa. Passeamos por tempo limitado. Andamos de luto, por pessoas próximas e por tantíssimas outras que não conhecemos.
De que modo poderá esta quaresma-em-quarentena ser caminho percorrido com os pés na terra e tornar-se exercício litúrgico e espiritual com sentido e com fruto? Que desejos cultivar?
A que práticas sensatas nos poderemos dispor, quando a penitência já está garantida?
Observo três exercícios de reparação. Reparação, de olhar com atenção. Reparação, de restauro. Reparar no quotidiano e no simples da vida, será um acto de resistência verdadeiramente espiritual.
Reparar nos/os sentidos
Olhar com mais atenção para entrever. Mesmo em casa, haverá sempre uma janela que dá para fora. Quanta vida acontece diante dos nossos olhos.
Escutar com mais vagar, a começar por aqueles com quem falamos diariamente, para pressentir o sentido no dito e do não dito de tantas palavras e de outros tantos silêncios. E da música, claro.
Tocar com mais cuidado, para reconhecer texturas, rugosidades, contornos, temperaturas. E quanto precisamos da inteligência do tacto, para não ficarmos distantes e insensíveis, em tempos em que os contactos físicos são arriscados e, por isso, inibidos e mortificados.
Saborear, para saber a graça da vida e cultivar as suas promessas. As coisas e os momentos simples do quotidiano são suficientemente saborosos e perfumados para saberem bem. Será uma questão de atenção. E de tempo. Porque as coisas e os momentos pedem tempo para dizer o que têm a dizer. E nós precisamos de tempo para as perscrutar e, reconhecidos, acolher e saborear.
Reparar no/o bem possível
Precisamos também de sonhos largos, de grandes desejos. É bom que nos movamos e impliquemos na procura do bem maior. O tempo que vivemos pode ser particularmente favorável para procurar reconhecer com benevolência e alegrar-se genuinamente com o bem possível. Com gratidão pelo que existe, mesmo que fosse pouco ou diferente do desejável. Com a humildade da aceitação e a paciência da espera.
Reparar no/o processo que somos
Somos processo lento de reelaboração do que somos. A vida e a fé são processo. Não são lugares parados que se ocupam e se repetem, acabados. São itinerários abertos que se percorrem. Por isso, têm sempre algo de imprevisível. Implicam o corpo, a mente, o espírito. E, mais uma vez, pedem tempo.