[O Sonho do Viajante] é um livro escrito a meio da vida e penso que é atravessado por esses dois sentimentos: entusiasmo e receio.
Por um lado, uma capacidade de espanto que penso que aumenta com o tempo. Uma capacidade de deslumbramento perante o mundo, perante a realidade. Ao mesmo tempo sentindo que o tempo é escasso, que o tempo de vigília acaba por ser pequeno perante o milagre que nos é dado testemunhar, verificar: no fundo, o milagre da própria vida nos seus detalhes mais ínfimos.

Por um lado é por esse desejo de vigília, de manter os olhos abertos que não há tempo para o sono. Mas por outro lado também há essa outra dimensão de um sentido de perda, de uma indagação mais profunda, de uma vigília forçada que penso que a nossa condição humana, mais tarde ou mais cedo, acaba por nos impor.

Sendo o dia, por excelência, o lugar da tarefa de existir, dos nossos tráficos e trânsitos, do nosso empenhamento, do nosso acto de criar o mundo, talvez a noite seja o melhor espelho para dizer o Homem.

A solidão que a noite implica, como contexto, e ao mesmo tempo a perspectivação daquilo que é o Homem, o desenho mais exacto de nós, só a câmara escura da noite é capaz de revelar. No sentido de que o Homem está só com o Universo. O seu contexto como que se apaga. É aquilo que diz Borges: a História Universal é contada por um só homem. Como se isto se pudesse repetir em cada um. Nesse sentido, a noite é esse estado de consciência profunda de si, em que o Homem está só perante o horizonte de sentido ou perante o silêncio da própria vida. Está só debaixo dos céus. É nesse momento, penso, que o poema deflagra.
A noite é o lugar da experiência mais funda. A noite, como dizia São João da Cruz, é o tempo da casa sossegada.

O silêncio também tem a ver com a noite. Há um tipo de silêncio que só a noite tem. Um silêncio onde sentimos o próprio mundo, onde sentimos o tempo de uma outra forma. Esse silêncio interessa-me muito como lugar de visibilidade. Penso que a noite é um lugar onde se vê melhor o próprio silêncio.
Paradoxalmente, essa insistência no silêncio toma-nos mais conscientes de como ele hoje é um bem escasso.
Penso que a função da poesia é reabilitar o silêncio, é perfurar o ruído – o ruído que somos, o ruído que nos cerca – até encontrarmos camadas subterrâneas de silêncio.
O silêncio é um caminho. Não basta, por exemplo, estarmos calados para estar em silêncio. Podemos estar calados e o rumor ser ensurdecedor. Há uma qualidade de silêncio que é uma conquista, que é um processo em que nós entramos.

A fé tem a ver com a noite. A luz só se vê à noite, como as estrelas. As estrelas brilham no céu nocturno. A luz da fé brilha na noite. A fé é um lugar sem certezas. A fé é um lugar de abertura. A fé é uma forma de hospitalidade radical. Para mim, as grandes imagens bíblicas da fé são as da luta de Jacob com o anjo (quando ele, no amanhecer ainda escuro, ao atravessar um riacho, luta com o próprio Deus sem saber que está a lutar com Deus; mas essa imagem do combate nocturno, agónico, um bocado imperceptível mas que nos fere e deixa depois no nosso corpo a ferida, é a imagem mais prodigiosa do que é a fé no Antigo Testamento) e a do percurso que as mulheres fazem de manhãzinha, com o dia ainda muito escuro, a caminho de um sepulcro que encontram vazio.

A fé tem necessariamente esse lado nocturno de indagação e de expectativa. A fé é uma expectativa. E é nesse sentido a imagem do salto no escuro.

José Tolentino de Mendonça