“Uma Santa Quaresma com horizonte pascal”
A Quaresma que iniciamos, neste ano de 2019, é como sempre tempo de graça e conversão. Já a conversão é, em si mesma, obra da graça divina, que não deixa de nos atrair para Deus, vida das nossas vidas.
É bom termos isto presente, para percebermos tudo o mais e nos percebermos a nós próprios, sempre e nas atuais circunstâncias, pessoais, sociais e eclesiais.
São grandes as contradições que sentimos, entre o que devia ser e o que o contradiz, a todos os níveis. Devastadores conflitos por esse mundo além, que tanto demoram em resolver, com populações em fuga e tão pouco acolhidas, clamam por um envolvimento muito mais forte e consequente da comunidade internacional e da ajuda humanitária.
O desrespeito pelo ambiente e as agressões ecológicas põem em causa o futuro – e já o presente – de populações inteiras e da humanidade em geral. O recente encontro promovido em Roma pelo Papa Francisco sobre “a proteção dos menores na Igreja” enfrentou um grave problema que exige solução radical, reprimindo os abusos, apoiando as vítimas e prevenindo tais casos. As trágicas notícias de violência doméstica, especialmente sobre mulheres, manifestam outra chaga intolerável. A corrupção abala a confiança indispensável à vida social e institucional. A proteção ativa de cada vida humana, da conceção à morte natural, continua à espera duma corresponsabilidade coletiva muito mais capaz, pois se trata da primeira alínea do nosso bem comum…
Um elenco assim, ou ainda mais extenso, poderia paralisar-nos pela vastidão e peso dos problemas que refere. Poderia retrair-nos no que nos toca imediatamente e alhear-nos do mais, que sendo de todos é nosso também.
E assim poderia acontecer, de facto, entre o atordoamento mediático e a desistência de compreender e atuar. Mas não poderá suceder de direito, porque a justiça nos impele a proporcionar a cada um o que lhe é devido – e a justiça divina se revela no comportamento de Cristo em relação ao bem de todos.
A Quaresma orienta-se exatamente nesse sentido, para nos identificarmos com Jesus Cristo no que Ele tem de mais essencial e ativo, ou seja, a filiação divina, raiz profunda da fraternidade universal.
Filiação divina significa viver de Deus para Deus, como Jesus com o Pai, no Espírito que os une. Esse mesmo Espírito que nos é concedido no Batismo, para assim vivermos e convivermos também.
Trata-se, portanto, de algo interior, fundamental e bastante. Aí mesmo, onde a solução se encontra numa intimidade divina que nos sustentará em absoluto e animará sempre e em qualquer circunstância que seja, mesmo a mais difícil. Aí mesmo, sem aparentar por fora o que de verdade não fossemos. Por toda a Quaresma ressoa o apelo de Cristo para sermos autênticos filhos de Deus e só assim nos definirmos e consequentemente demonstrarmos.
As práticas quaresmais – a esmola, a oração e o jejum – têm em Jesus e nos seus discípulos essa dimensão precisa. Resolvem-nos com Deus para nos resolverem na vida. Ouvimos no Evangelho, três vezes seguidas: «Quando deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a direita, para que a tua esmola fique em segredo… Quando rezares, ora a teu Pai em segredo… Quando jejuares, que os homens não percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai, que está presente em segredo; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa».
Ao ouvirmos o profeta Joel: «Diz agora o Senhor: Convertei-vos a Mim de todo o coração…» E depois São Paulo: «Nós vos pedimos em nome de Cristo, reconciliai-vos com Deus!» – é a isso mesmo que se referem, como ponto primeiro de tudo o mais que possa e deva acontecer. Uma atitude basicamente “religiosa”, digamos, que religando-nos a Deus nos religue a tudo e a todos, onde afinal o mesmo Deus nos espera também. Daí que a oração autêntica se concretizará em caridade, saciando-nos no essencial que nunca acabará, o verdadeiro amor, outro nome da convivência perfeita. Dito de maneira mais corrente, a Quaresma há de levar-nos da distração à conversão.
O Papa Francisco dirige-nos a sua Mensagem Quaresmal também em torno duma filiação divina tão verdadeira em nós como libertadora para a criação inteira, partindo dum luminoso passo da Epístola de São Paulo aos Romanos: «A criação encontra-se em expetativa ansiosa, aguardando a revelação dos filhos de Deus (Rm 8, 19).
Recomendo muito a leitura atenta, pessoal e comunitária, da Mensagem papal nesta Quaresma que iniciamos. Tem uma sequência lógica e muito clara, assim enunciada: 1) A redenção da criação, ou seja, a ligação íntima da nossa libertação com a da criação inteira. 2) A força destruidora do pecado, ou seja, a trágica consequência da rotura com Deus, que se torna rotura com tudo. 3) A força sanadora do arrependimento e do perdão, isto é, a real possibilidade duma conversão libertadora, verdadeiramente pascal.
A Mensagem insere-se na repetida insistência do Papa Francisco numa “ecologia integral” que supere de vez o egoísmo que desarmoniza a totalidade em que devemos viver. Bem pelo contrário, quando alguém vive realmente como filho de Deus, «beneficia também a criação, cooperando para a sua redenção».
De “redenção”, fala o Papa, pois o cativeiro espiritual de quem vive apenas para si aprisiona a natureza nesse mesmo egoísmo, sufocando-a também. Por isso acentua, com dramático realismo: «Quando não vivemos como filhos de Deus, muitas vezes adotamos comportamentos destruidores do próximo e das outras criaturas – mas também de nós próprios -, considerando, de forma mais ou menos consciente, que podemos usá-los como bem nos apraz».
E finalmente – urgentemente – abre-se a Páscoa, como inadiável horizonte. A Quaresma exercita-a já, para a festejarmos depois. O ritmo das estações do ano acaba por ser monótono, quando não supera os repetidos ciclos com que o paganismo se entretém. A primeira lua cheia da Primavera, que marcará como sempre a Páscoa deste ano, há de trazer-nos bem mais do que isso, se nos encontrar melhores, numa filiação divina que nos libertará também, porque o louvor de Deus e o bem dos outros nos preencherão a vida.
É o significado e o fruto do exercício quaresmal que retomamos: «A Quaresma é sinal sacramental desta conversão. Ela chama os cristãos a encarnarem, de forma mais intensa e concreta, o mistério pascal na sua vida pessoal, familiar e social, particularmente através do jejum, da oração e da esmola», escreve ainda o Papa.
Não encontraria melhores palavras para vos desejar a todos uma Santa Quaresma, com horizonte verdadeiramente pascal!
Lisboa, 6 de março de 2019
† MANUEL, Cardeal-Patriarca