Domingo dentro da Oitava do Natal (PDF) TEXTO
UM SANTO NATAL
Cardeal Tolentino de Mendonça

Matthias Stomer, Natividade
As nossas sociedades não podem esquecer que o valor primeiro é a vida, estarmos vivos é o primado.
Em volta da vida, nós devemos ajoelhar-nos, oferecer os nossos dons, sentir a grande alegria.
Porque se deixamos de sentir alegria, quer dizer que um apagamento aconteceu dentro de nós, que deixamos de ter a capacidade de espanto, de fraternidade e de acolhimento.
Guardadores do espanto
Ermes Ronchi in Avvenire

Pintor bizantino desconhecido, Apresentação
Maria e José levaram o Menino a Jerusalém, para o apresentar ao Senhor. Um casal jovem, com a sua primeira criança, chega levando a pobre oferta dos pobres, duas rolas, e o mais precioso dom do mundo: uma criança.
No limiar, dois anciãos à espera, Simeão e Ana. Que aguardavam, diz Lucas, «porque as coisas mais importantes do mundo não são para procurar, mas para esperar» (Simone Weil). Porque quando o discípulo está pronto, o mestre chega.
Não são os sacerdotes a acolher o Menino, mas dois leigos, que não desempenham qualquer papel oficial, mas são dois enamorados de Deus, olhos velados pela velhice, mas ainda acesos de desejo.
Ela, Ana, é a terceira profetiza do Novo Testamento, depois de Isabel e Maria. Porque Jesus não pertence à instituição, não é dos sacerdotes, mas da humanidade. É Deus que se encarna nas criaturas, na vida que acaba e naquela que floresce.
Jesus «é nosso, de todos os homens e de todas as mulheres. Pertence aos sedentos, aos sonhadores, como Simeão; àqueles sabem ver para além, como Ana; àqueles capazes de se encantar diante de um recém-nascido, porque sentem Deus como futuro e como vida» (M. Marcolini).
Simeão pronuncia uma profecia de palavras imensas sobre Maria, três palavras que atravessam os séculos e chegam a cada um de nós: o Menino está aqui como queda e ressurreição, como sinal de contradição para que sejam desvelados os corações.
Queda é a primeira palavra. Cristo, que arruínas não o homem mas as suas sombras, a vida insuficiente, a vida moribunda, o meu mundo de máscaras e mentiras, que arruínas a vida iludida.
Sinal de contradição, a palavra segunda. Ele que contradiz as nossas vidas com a sua vida, os nossos pensamentos com os seus pensamentos, a falsa imagem que alimentamos de Deus como rosto inédito de um paizinho de braços grandes e coração de luz, contradição de tudo aquilo que contradiz o amor.
Ele está aqui para a ressurreição, é a terceira palavra: para Ele ninguém é dado por perdido, ninguém está acabado para sempre, é possível recomeçar e ser novo. Será uma mão que te tomará pela mão, que repetirá a cada aurora aquilo que disse à filha de Jairo: menina, levanta-te! Jovem vida, levanta-te, ergue-te, aparece, resplandece, retoma a estrada e a luta.
Três palavras que dão respiração à vida. Festa da Apresentação. O Menino Jesus é levado ao templo, perante Deus, porque não é simplesmente o filho de José e Maria: «Os filhos não são nossos» (Kalil Gibran), pertencem a Deus, ao mundo, ao futuro, à sua vocação e aos seus sonhos, são a frescura de uma profecia “biológica”.
A nós cabe proteger, como Simeão e Ana, pelo menos o espanto.
Guias guiados
Papa Francisco

Códice medieval, Apresentação
Com os olhos da mente, fixemos o ícone da Virgem Mãe, Maria, que caminha com o Menino Jesus nos braços. Introdu-Lo no templo, introdu-Lo no povo, leva-O para encontrar o seu povo. Os braços da Mãe são como que a escada pela qual o Filho de Deus desce até nós, a escada da condescendência de Deus. É duplo o caminho de Jesus: desceu, fez-Se como nós, para subir ao Pai juntamente connosco, fazendo-nos como Ele.
Podemos contemplar o âmago deste movimento, imaginando a cena evangélica de Maria que entra no templo com o Menino nos braços. Nossa Senhora caminha, mas o Filho caminha antes d’Ela. Ela leva-O, mas é Ele que A leva neste caminho de Deus que vem a nós para podermos ir até Ele.
Jesus percorreu a nossa própria estrada para nos indicar a via nova, um «caminho novo e vivo» que é Ele próprio. E, para nós consagrados, esta é a única estrada, sem alternativa, que, em concreto, devemos percorrer com alegria e perseverança.
O Evangelho alude cinco vezes à obediência de Maria e José à «Lei do Senhor». Jesus não veio para fazer a sua vontade, mas a vontade do Pai; e isso – disse Ele – era o seu «alimento». De igual modo, quem segue Jesus, abraça a via da obediência, imitando a «condescendência» do Senhor, abaixando-se e assumindo a vontade do Pai até ao aniquilamento e à humilhação de si mesmo. Para um religioso, progredir significa abaixar-se no serviço, isto é, fazer o mesmo caminho de Jesus, que «não considerou como uma usurpação ser igual a Deus».
O Espírito Santo, na sua criatividade infinita, exprime-o também nas várias regras de vida consagrada que nascem, todas, da «sequela Christi», isto é, deste caminho de abaixar-se servindo. Através desta «lei», os consagrados podem alcançar a sabedoria, que não é uma aptidão abstracta mas é obra e dom do Espírito Santo. Um sinal evidente de tal sabedoria é a alegria.
Na narração da Apresentação de Jesus no Templo, a sabedoria é representada por dois anciãos, Simeão e Ana: pessoas dóceis ao Espírito Santo, conduzidas por Ele, animadas por Ele. O Senhor concedeu-lhes a sabedoria através dum longo caminho pela via da obediência à sua lei; obediência, que, por um lado, humilha e aniquila, mas, por outro, acende e guarda a esperança, fazendo-os criativos, porque estavam cheios de Espírito Santo. Os dois celebram uma espécie de liturgia à volta do Menino que entra no Templo: Simeão louva o Senhor e Ana «prega» a salvação. Como no caso de Maria, também o velho Simeão toma o Menino nos seus braços, mas, na realidade, é o Menino que o agarra e conduz.
É curioso notar que neste caso, criativos, não são os jovens mas os anciãos. Os jovens, como Maria e José, seguem a lei do Senhor pela via da obediência; os anciãos, como Simeão e Ana, vêem no Menino o cumprimento da Lei e das promessas de Deus. E são capazes de fazer festa: são criativos na alegria, na sabedoria. Mas é o Senhor que transforma a obediência em sabedoria, por acção do Espírito Santo.
Às vezes, Deus pode conceder o dom da sabedoria mesmo a um jovem inexperiente; basta que esteja disponível para percorrer a via da obediência e da docilidade ao Espírito.
Hoje também nós queremos, como Maria e como Simeão, tomar Jesus nos braços para que Ele Se encontre com o seu povo; mas de certeza só o conseguiremos, se nos deixarmos arrebatar pelo mistério de Cristo.