Domingo XXX do Tempo Comum (PDF) TEXTO
A Humilhação é a surpresa de Deus
A humilhação de Jesus revela o estilo de Deus e que deve ser também o estilo do cristão: a humildade.
Um estilo que nunca acaba de nos surpreender, pois nunca nos habituamos à ideia de um Deus humilde.
Deus humilha-Se para caminhar com o seu povo, para suportar as suas infidelidades.
Papa Francisco, Domingo de Ramos
Expor-se a Deus
José Tolentino Mendonça, In O tesouro escondido
Podemos rezar como o fariseu. O vocativo inicial, «Ó Deus», confere às suas palavras uma cadência solene e retórica. A sua é uma oração auto-referenciada: ouve-se o «eu», «eu», «eu» por toda a parte.
O motivo de louvor que encontra é a diferenciação face aos outros, que são isto e aquilo: ladrões, adúlteros, injustos, que são sobretudo como aquele publicano que está atrás dele no templo. Ele é um bom praticante, que se contempla a si mesmo, deslumbrado com as suas obras que, na oração dele, não têm um carácter penitenciai ou de súplica.
Enquanto o fariseu faz um uso do espaço sem grandes preocupações nem pruridos (ele está simplesmente de pé e fala, fala muito), o publicano distingue o próximo e o distante, o alto e o baixo, o corpo e a palavra: ele sente-se «longe», não ousa erguer o olhar e bate no peito enquanto profere algumas escassas palavras. Tem consciência daquilo que o afasta. Desloca-se não no eixo horizontal, mas no vertical.
Ele não finge uma proximidade que não existe. Mas mostra-se assim, tal qual, a Deus. Quando, na oração, ele se identificar como «o pecador», isso não será um mero artifício do discurso, mas corresponderá a uma verdade existencial que a intensidade simbólica da sua atitude corporal vibrantemente corrobora.
Diversos autores consideram que o gesto do publicano bater no peito deve ser interpretado como um sinal da sua contrição. O significado mais frequente deste gesto, no mundo daquela época, é o de uma emoção intensa, provocada por um desgosto ou por uma situação desesperada, associando-se também à ideia de lamento.
A sua angústia, porém, não é total: do fundo áspero da sua noite ele clama a Deus. E reza: «Ó Deus, tem misericórdia de mim, o pecador.» Esta passagem é a única do Evangelho em que a «pecador» se junta o artigo (o pecador). Isto não quer dizer que o publicano seja o maior pecador à face da terra, mas é assim que ele se sente e se coloca diante de Deus.
O ponto espiritual de viragem na parábola é esta atitude de verdade do publicano, em significativo contraste com a do fariseu. Ele faz convergir para Deus toda a sua vida, o seu bloqueio, as suas lágrimas, o seu desespero. Ele coloca-se completamente na dependência de Deus. Que Deus faça. Que Deus tenha misericórdia.
Rezar, outra coisa não é que expor-se a Deus, sem máscaras, nem véus, nem falsas virtudes, nem diferenciações. É expor tudo. Expor até a nossa impossibilidade de rezar.
Entregarmo-nos completamente a Deus
Jean-Marie Gueullette, Pequeno tratado da oração silenciosa
Nós temos uma vida complicada, incessantemente confrontada com dificuldades de todo o tipo. A simplicidade não nos é natural, nem sequer na vida espiritual.
Aquele para quem a oração parece uma realidade ausente da própria vida terá tendência para pensar que é por falta de tempo e de competência. «Se eu não rezo, é certamente porque isso toma muito tempo, mas, de qualquer forma, eu não sei como hei-de rezar.»
Na Bíblia, há uma história que nos permite reflectir sobre essa necessidade que sentimos de olhar para a relação com Deus como uma coisa complicada, sendo preferível renunciar a ela: O sírio Naaman era leproso e veio visitar o profeta Eliseu na esperança de obter dele a sua própria cura. Este recomenda-lhe que faça uma coisa muito simples: que se lave sete vezes seguidas no rio. Naaman sente-se despeitado. Esperava que o profeta fizesse gestos muito estranhos, pronunciando palavras misteriosas; ele, pelo contrário, manda-o lavar-se.
Começa a matutar dizendo que na sua terra também se poderia lavar e que não havia necessidade de fazer uma viagem daquelas para ouvir uma prescrição terapêutica daquele tipo. O seu servo, cheio de sabedoria, diz-lhe: «Se o profeta te tivesse mandado fazer alguma coisa extraordinária, tu não a terias feito?»
Hoje, constatamos um interesse crescente por métodos terapêuticos estranhos; muitos apaixonam-se por concepções antropológicas complexas. Frente a semelhante arsenal, pode parecer muito pobre dizer que, para rezar, devemos assumir a posição conveniente e colocar-nos na presença de Deus com todo o nosso ser. Contudo, esse é um ensinamento muitíssimo presente na tradição cristã. E, no entanto, ignorado, talvez por demasiado simples.
Limitemo-nos, portanto, a fazer actos de amor a Deus, com todo o nosso coração. Voltemo-nos para Ele com todo o nosso ser, incluindo a inteligência, num movimento que implica, ao mesmo tempo, adoração, veneração, confiança, afecto filial, amizade, esperança, todo o tipo de harmonia, diferente, consoante as pessoas e os momentos.
O essencial é entregarmo-nos completamente a Ele. Porquê? Porque essa é a única maneira de entrarmos em relação com Ele em modo de igualdade. Ele dá-Se completamente àquele que está disposto a acolhê-lo. Ele está presente, de forma incondicional, ao lado daqueles que criou e que considera seus filhos. Tudo o que nós podemos fazer, é fazer como Ele: dar-mo-nos completamente, mantermo-nos presentes. Sabendo apenas que a sua auto-doação precederá sempre a nossa.
Esta forma de rezar baseia-se, com efeito, num movimento de desapego em relação a tudo o que não seja Deus. Devemos, portanto, desligar-nos de qualquer preocupação, de qualquer ideia, de qualquer recordação, boa ou má.
Desligarmo-nos não é rejeitar ou esquecer, mas largar, pelo menos temporariamente, para nos podermos dar a Deus. Pôr de lado, para nos recentrarmos na presença de Deus. Na verdade, tudo isso nos pode encher a cabeça, mesmo que sejam ideias muito piedosas ou a solicitude cheia de caridade para com o nosso próximo.
Mesmo que seja bom, a oração não é o momento para isso.