Domingo de Ramos (PDF) TEXTO
Mais uma vez, no domingo que antecede a Páscoa, a comunidade cristã recria a última entrada de Jesus na cidade santa de Jerusalém.
Aquela manifestação espontânea, entusiástica e desorganizada da multidão, foi o corolário de um percurso breve e intenso.
Durante os três anos de missão, Ele identificara-Se com os indigentes, caminhara e comera com eles, dera nome aos sem nome, olhara nos olhos dos cegos, resgatara os paralíticos das suas cadeias e rompera com as estruturas escravizantes do poder.
Ele tornara-Se um sinal de esperança para uma multidão espezinhada por um exército estrangeiro, esfomeada de liberdade, sedenta de justiça.
Já conhecemos o final da história: aqueles que O aclamaram como o Cristo, passados poucos dias, haviam de O insultar quando, ridicularizado pelos soldados romanos, percorresse o caminho dos crucificados, em direção ao calvário. E esta imagem condensa muitas palavras.
P. Nélio Pita, 2023
Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?
Papa Francisco, 2013 (excertos)
A única invocação pronunciada na cruz por Jesus. Muitos foram os sofrimentos de Jesus e, sempre que ouvimos a narração da paixão, penetram-nos na alma.
Foram sofrimentos do corpo (bofetadas, pancadas, flagelação, coroa de espinhos, tortura da cruz) e da alma (traição de Judas, negações de Pedro, condenações religiosa e civil, zombaria dos guardas, insultos ao pé da cruz, rejeição de tantos, falência de tudo, abandono dos discípulos). E contudo, restava a Jesus uma certeza: a proximidade do Pai.
Mas agora acontece o impensável; antes de morrer, clama: “Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?”. O abandono de Jesus.
Estamos perante o sofrimento mais dilacerante, o do espírito: na hora mais trágica, Jesus experimenta o abandono por parte de Deus. Antes disto, nunca chamara o Pai pelo nome genérico de Deus. O acontecimento real é o abaixamento extremo, ou seja, o abandono de seu Pai, o abandono de Deus. Aquilo que o Senhor chega a sofrer por nosso amor, até temos dificuldade de o entender. Vê o céu fechado, experimenta o viver no seu amargo limite, o naufrágio da existência, o colapso de toda a certeza.
Na Bíblia, o verbo “abandonar” é forte; aparece em momentos de dor extrema, nas mais drásticas dilacerações dos vínculos. Cristo levou tudo isto para a cruz, ao carregar sobre Si o pecado do mundo. E, no auge, Ele experimentou a situação mais estranha no seu caso: o abandono, a distância de Deus.
E porque foi tão longe? Por nós. Cada um de nós, ouvindo referir o abandono sofrido por Jesus, diga para si mesmo: por mim.
Nas minhas quedas, na minha desolação, quando me sinto traído ou traí os outros, quando me sinto descartado ou descarto os outros, quando me sinto abandonado ou abandonei os outros, pensemos que Ele foi abandonado, traído, descartado. Nisto encontramo-Lo a Ele. Quando me sinto transviado e perdido, quando não aguento mais, Ele está comigo; nos meus tantos porquês sem resposta, Ele está neles.
Na cruz, enquanto experimenta o abandono extremo, não Se deixa cair no desespero, mas reza e entrega-Se nas mãos do Pai, embora O sinta distante ou nem O sinta sequer, porque Se encontra abandonado. No abandono, entrega-Se, continua a amar os Seus que O deixaram sozinho, perdoa aos que O crucificaram. E assim o abismo dos nossos inúmeros males é imerso num amor maior, de tal modo que cada uma das nossas separações se transforma em comunhão.
Há povos explorados e deixados à própria sorte; há pobres que vivem nas encruzilhadas das estradas e cujo olhar não temos a coragem de fixar; há migrantes, que já não são rostos, mas números; há reclusos rejeitados, pessoas catalogadas como problema. Mas há também muitos cristos abandonados invisíveis, escondidos, descartados de forma “elegante”: crianças impedidas de nascer, idosos deixados sozinhos, doentes não visitados, pessoas portadoras de deficiência ignoradas, jovens que sentem dentro um grande vazio sem que ninguém escute verdadeiramente o seu grito de dor. Os abandonados de hoje. Os cristos de hoje.
Peçamos a graça de saber ver, saber reconhecer o Senhor que continua a clamar neles.
Não permitamos que a sua voz se perca no silêncio ensurdecedor da indiferença. Não fomos deixados sozinhos por Deus; cuidemos de quem é deixado só. Então, só então, faremos nossos os desejos e os sentimentos d’Aquele que por nós “Se esvaziou a Si mesmo”.