Domingo I da Quaresma (PDF) TEXTO
Converter-se é isto: voltar a ser fiel.
Fidelidade, esta atitude humana que não é tão comum na vida das pessoas, nas nossas vidas. Há sempre ilusões que chamam a atenção, e muitas vezes queremos ir atrás destas ilusões.
Peçamos hoje ao Senhor a graça da fidelidade: de agradecer quando Ele nos dá certezas, mas nunca pensar que são “minhas” certezas e sempre olhar para além das próprias certezas; a graça de sermos fiéis mesmo diante dos túmulos, perante o colapso de tantas ilusões. Fidelidade, que permanece sempre, mas não é fácil mantê-la. Que Ele, o Senhor, a conserve.
Papa Francisco, 14 Abril 2020
Começa um caminho novo. No deserto.
Ermes Ronchi, in Avvenire
O Espírito impele Jesus para o deserto, e aí permanece quarenta dias, tentado por Satanás.
A tentação? Uma escolha entre dois amores.
Viver é escolher. A tentação pede-te para escolheres a bússola, a estrela polar para o teu coração.
Se não escolhes, não vives, não de coração cheio.
Ao ponto de o apóstolo Tiago, ao caminhar ao longo deste fio subtil mas fortíssimo, nos fazer sobressaltar: considerai como alegria perfeita sofrer toda a espécie de provações e de tentações.
Quase a dizer-nos que ser tentados talvez seja belo, que decerto é absolutamente vital, para a verdade e liberdade da pessoa.
O arco-íris, lançado sobra a arca de Noé entre céu e Terra, após quarenta dias de navegação no dilúvio, toma novas raízes no deserto, nos quarenta dias de Jesus. Nele entrevejo as cores nas palavras: estava com os animais selvagens e os anjos serviam-no. Aflora a nostalgia do jardim do Éden, o eco da grande aliança após o dilúvio. Jesus reconstrói a harmonia perdida, e até o infinito se alinha.
Mas aqueles animais selvagens que Jesus encontra são também o símbolo das nossas partes escuras, os espaços de sombra que nos habitam, aquilo que não me permite ser completamente livre ou feliz, que me abranda, que me assusta: os nossos animais selvagens que um dia nos arranharam, dilaceraram, agarraram.
Jesus estava com elas. Aprendamos com Ele a estar ali, a olhá-las de frente, a nomeá-las. Não as deves nem ignorar nem temer, não as deves sequer matar, mas dar-lhes um nome, que é como conhecê-las, e depois dar-lhes uma direcção: são a tua parte de caos, mas quem te faz encontrá-las é o Espírito Santo.
Também a ti, como a Israel, Deus fala no tempo da provação, no deserto, fá-lo através da tua fraqueza, que se torna o teu ponto de força. Talvez não te cures totalmente dos teus problemas, mas a maturidade do ser humano consiste em começar um caminho, com paciência (amadureces não quando resolves tudo, mas quando tens paciência e harmonia com tudo). Então dás-te conta que Deus te fala na fragilidade, e que o Espírito Santo é quem te permite voltares a enamorar-te de toda a realidade, a partir dos teus desertos.
Depois de João Baptista ter sido preso, Jesus andou pela Galileia a proclamar o Evangelho de Deus. E dizia: o Reino de Deus está próximo. Deus proclama o “Evangelho de Deus”. Deus como uma “bela notícia”. Não era óbvio. Nem toda a Bíblia é Evangelho; nem toda é bela e alegre notícia; por vezes é ameaça e juízo, com frequência é preceito e intimação. Mas a característica original do rabi de Nazaré é anunciar Evangelho, uma palavra que conforta a vida, uma notícia feliz: Deus fez-se próximo, é um aliado amável, é um abraço, um arco-íris, um beijo em cada criatura.
A nossa biografia da luz começa com a consciência da sombra
Pablo D’Ors, In Biografía de la luz
Jesus não vai ao deserto por sua própria vontade, mas conduzido pelo Espírito, impelido por uma força maior. Ninguém vai ao deserto porque lhe apetece, ou porque foi convidado a fazer uma experiência. Vai-se porque não se tem outro remédio: há algo poderoso que nos puxa de nós e que, no final, nos fez compreender que temos de parar e pormo-nos, de uma vez por todas a escutar. Que temos de voltar a começar. Ou, simplesmente, começar de verdade, dado que todo o anterior foi um mero preâmbulo.
Este Espírito, a quem Jesus obedece com alegria, está representado no imaginário cristão por uma pomba. Todos temos uma pomba interior que nos guia para o nosso próprio centro. Claro que o caminho para esse centro não é sempre de rosas: essa pomba nem sempre nos conduz a lugares bonitos e agradáveis, mas também a sítios desagradáveis e até inóspitos que, por alguma razão que inicialmente não compreendemos, nos convêm.
O deserto, como imagem, é a outra face do jardim. Se no Éden, tudo é harmonia e prazer, no deserto, é onde o mal costuma apresentar-se. É compreensível: no mundo costuma haver demasiado ruído para que o mal se possa distinguir.
No deserto, ao nele não reinarem as pressas nem a confusão, é onde podemos desmascará-lo e até vencê-lo, afastando-o de nós durante uma temporada, quase nunca para sempre.
Encontrar-se com o obscuro, identificá-lo, é um presente do Espírito.
Nada o imaginaria à partida, mas dar-se conta das trevas que reinam no mundo e no nosso coração é o melhor indício de que o caminho espiritual começou.
A nossa biografia da luz começa com a consciência da sombra.
Não há nada sem obstáculos. Uma meta sem obstáculo não é uma verdadeira meta. Há sempre algo a conseguir, ainda que seja tão-só a consciência de que não há nada a conseguir. Uma missão dinamiza a pessoa, põe-na em movimento e na positiva tensão do cumprimento.
Seguindo o exemplo do seu primo João, para discernir bem qual é exactamente a sua missão e como realizá-la, Jesus afasta-se de tudo e de todos durante algumas semanas. Para não ser distraído por ninguém nem por nada, decide ir só e jejuar.
Solidão e sobriedade ajudar-me-ão no meu discernimento vital.
Como esta fase preparatória requereria, decerto, tempo, Jesus partiu sem data de regresso.
Todos os retiros deveriam ser assim: ninguém deveria voltar até ter cumprido o propósito que o impeliu a partir.
Alguém pode calcular que um discernimento ou uma purificação vão demorar-lhe uma semana, mas pode encontrar-se logo com o que necessita, ou – também é possível – que esse assunto que o levou ao deserto se resolva inesperadamente em poucas horas. O normal é que todos necessitemos de bastante tempo para limpar.