Domingo III da Páscoa (PDF)  TEXTO

Fritz von Uhde, O caminho de Emaús

Jesus assumiu verdadeiramente a nossa humanidade, partilhando da nossa condição com todos os seus afectos para assim nos trazer a salvação.

Ele tomou sobre si a minha tristeza para doar-me a sua alegria, e desceu com os nossos passos até à angústia da morte, para nos fazer voltar à vida com os seus passos.”

Segundo João Paulo II, a liturgia da Igreja tem como função primária reconduzir-nos a percorrer incansavelmente o caminho pascal aberto por Cristo, no qual se aceita morrer para entrar na vida.

In Communio, revista católica

 

O ícone de Emaús como chave de leitura do presente e do futuro

Papa Francisco, Brasil, 2013

Jan Wildens, Jesus e os discipulos de Emaús

O mundo cristão está gradualmente a tornar-se estéril, e esgota-se como uma terra profundamente explorada que se torna areia. Não devemos ceder ao desencanto, ao desânimo, às lamentações. Trabalhamos muito e, às vezes, parece que acabamos derrotados, como quem tivesse de fazer o balanço de uma estação já perdida, olhando para aqueles que nos deixam, ou já não nos consideram credíveis, relevantes.

Vamos ler a esta luz, mais uma vez, o episódio de Emaús. Os dois discípulos fogem de Jerusalém, afastam-se da “nudez” de Deus. Estão escandalizados com o falhanço do Messias, em quem haviam esperado, e que agora aparece irremediavelmente derrotado, humilhado, mesmo após o terceiro dia.

O mistério difícil das pessoas que abandonam a Igreja; de pessoas que, após se deixarem iludir por outras propostas, consideram que a Igreja – a sua Jerusalém – nada mais lhes pode oferecer de significativo e importante. E assim seguem pelo caminho sozinhos, com a sua desilusão.
Talvez a Igreja lhes apareça demasiado frágil, talvez demasiado longe das suas necessidades, talvez demasiado pobre para dar resposta às suas inquietações, talvez demasiado fria para com elas, talvez demasiado auto-referencial, talvez prisioneira da própria linguagem rígida, talvez lhes pareça que o mundo fez da Igreja uma relíquia do passado, insuficiente para as novas questões; talvez a Igreja tenha respostas para a infância do homem, mas não para a sua idade adulta.

O facto é que hoje há muitos que são como os dois discípulos de Emaús; e não apenas aqueles que buscam respostas nos novos e difusos grupos religiosos, mas também aqueles que parecem já viver sem Deus tanto em teoria como na prática.
Perante esta situação, o que fazer?

Serve uma Igreja que, na sua noite, não tenha medo de sair. Serve uma Igreja capaz de interceptar o caminho deles. Serve uma Igreja capaz de inserir-se na sua conversa. Serve uma Igreja que saiba dialogar com aqueles discípulos, que, fugindo de Jerusalém, vagueiam sem meta, sozinhos, com o seu próprio desencanto, com a desilusão de um cristianismo considerado hoje um terreno estéril, infecundo, incapaz de gerar sentido.

Muitos se enamoraram das potencialidades da globalização e, nela, existe algo de verdadeiramente positivo. Mas, a muitos, escapa o lado obscuro: o extravio do sentido da vida, a desintegração pessoal, a perda da experiência de pertencer a um “ninho” seja ele qual for, a violência subtil mas implacável, a ruptura interior e a fratura nas famílias, a solidão e o abandono, as divisões e a incapacidade de amar, de perdoar, de compreender, o veneno interior que torna a vida um inferno, a necessidade da ternura porque nos sentimos tão inadaptados e infelizes, as tentativas frustradas de encontrar respostas na drogas, no álcool, no sexo, que se tornam novas prisões.

E muitos procuraram atalhos, porque apresenta-se demasiado alta a «medida» da Grande Igreja. Muitos pensaram: a ideia de homem é grande demais para mim, o ideal de vida que propõe está fora das minhas possibilidades, a meta a alcançar é inatingível, longe do meu alcance. Todavia eu não posso viver sem ter pelo menos alguma coisa, nem que seja uma caricatura, daquilo que é demasiado elevado para mim, daquilo que não posso me permitir. Com a desilusão no coração, foram à procura de alguém que os iludirá uma vez mais.

A grande sensação de abandono e solidão, de não pertencerem sequer a si mesmos que muitas vezes surge dessa situação, é dolorosa demais para ser silenciada. Há necessidade de desabafar, restando-lhes então a via da lamentação: Como é que chegamos a esse ponto? Mas a própria lamentação torna-se, por sua vez, como um boomerang que regressa e acaba por aumentar a infelicidade. Poucas pessoas são capazes de ouvir a dor: é preciso pelo menos anestesiá-la.

Hoje, serve uma Igreja capaz de fazer companhia, de ir para além da simples escuta; uma Igreja, que acompanha o caminho pondo-se em viagem com as pessoas; uma Igreja capaz de decifrar a noite contida na fuga de tantos irmãos e irmãs de Jerusalém; uma Igreja que se dê conta de como as razões, pelas quais há quem se afaste, contém já em si mesmas também as razões para um possível retorno, mas é necessário saber a totalidade com coragem.
Em Jerusalém, residem as nossas fontes: Escritura, Catequese, Sacramentos, Comunidade, amizade do Senhor, Maria e os Apóstolos… Somos ainda capazes de contar de tal modo essas fontes, que despertem o encanto pela sua beleza?

Porventura conhece-se algo de mais forte que a força escondida na fragilidade do amor, do bem, da verdade, da beleza?
A busca do que é cada vez mais rápido atrai o homem de hoje: internet rápida, carros velozes, aviões rápidos, relatórios rápidos… E, todavia, sente-se uma necessidade desesperada de calma, quero dizer de lentidão. A Igreja sabe ainda ser lenta: no tempo para ouvir, na paciência para costurar novamente e reconstruir? Ou a própria Igreja já se deixa arrastar pelo frenesi da eficiência?

Recuperemos a calma de saber sintonizar o passo com as possibilidades dos peregrinos, com os seus ritmos de caminhada, recuperemos a capacidade de estar sempre perto para lhes permitir abrirem uma brecha no desencanto que existe nos corações, para que possam entrar. Eles querem esquecer Jerusalém onde residem as suas fontes, mas assim acabarão por sentir sede.

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