Domingo III da Quaresma (PDF) TEXTO

Duccio di Buoninsegna, Jesus e a Samaritana
A fé nasce da escuta» (Romanos 10, 17), dirá o apóstolo Paulo: da escuta de Jesus nasceu a fé da samaritana, da escuta da samaritana nasceu a fé da sua gente.
E da fé provém o conhecimento, do conhecimento o amor: este é o acontecimento cristão, admiravelmente sintetizado no encontro de duas pessoas sedentas!
Enzo Bianchi In “Monastero di Bose”
Cansado da caminhada
Papa Francisco, 26.01.2019
Para a nossa imaginação, sempre em movimento, é relativamente fácil contemplar e entrar em comunhão com a actividade do Senhor, mas nem sempre sabemos ou podemos contemplar e acompanhar as «fadigas do Senhor», como se estas não se apropriassem a Deus. Mas o Senhor cansou-Se e, nesta fadiga, encontra lugar tanto cansaço dos nossos povos e da nossa família, das nossas comunidades e de todos aqueles que estão cansados e oprimidos.
Múltiplas são as causas e motivos que nos podem provocar a fadiga da caminhada, a nós sacerdotes, consagrados e consagradas, membros dos movimentos laicais: desde as longas horas de trabalho que deixam pouco tempo para comer, descansar e estar com a família, até às «tóxicas» condições laborais e afectivas que levam ao esgotamento e desgastam o coração; desde a simples dedicação diária até ao peso rotineiro de quem já não sente gosto ou não encontra reconhecimento e apoio para enfrentar as exigências de cada dia; desde as situações complicadas já habituais e previsíveis até aos momentos urgentes e angustiantes de pressão… Uma gama completa de pesos a suportar.
Seria impossível tentar abraçar todas as situações que quebrantam a vida dos consagrados, mas, em todas elas, sentimos a necessidade urgente de encontrar um poço onde se possa aplacar e saciar a sede e o cansaço do caminho. Todas elas reclamam, como um grito silencioso, um poço donde começar de novo.
Desde há algum tempo para cá, às vezes parece ter-se instalado nas nossas comunidades uma espécie subtil de cansaço, que nada tem a ver com o cansaço do Senhor. Trata-se de uma tentação que poderíamos chamar o cansaço da esperança. Ou seja, o cansaço que surge quando o sol, no pino – como sugere o Evangelho –, dardeja a pique os seus raios, tornando as horas insuportáveis, e fá-lo com tal intensidade que não deixa avançar nem olhar para diante. Como se tudo ficasse confuso.
Não me refiro ao «particular aperto do coração» (São João Paulo II) de quem ao fim do dia, apesar de quebrantado pelo trabalho, consegue mostrar um sorriso sereno e agradecido; mas a um outro cansaço que nasce ao olhar o futuro quando a realidade me cai em cima pondo em questão as forças, os recursos e a viabilidade da missão neste mundo, que não cessa de mudar e interpelar.
É um cansaço paralisador. Nasce de olhar para frente e não saber como reagir face à intensidade e incerteza das mudanças que estamos atravessando como sociedade. Tais mudanças parecem não só pôr em questão as nossas modalidades de expressão e compromisso, os nossos hábitos e atitudes ao enfrentar a realidade, mas frequentemente colocam também em dúvida a própria viabilidade da vida religiosa no mundo actual. E a própria velocidade destas mudanças pode levar a imobilizar opções e opiniões e, aquilo que outrora poderia ser significativo e importante, hoje parece que já não tem lugar.
O cansaço da esperança nasce da constatação de uma Igreja ferida pelo seu pecado e que, muitas vezes, não soube escutar tantos gritos nos quais se escondia o grito do Mestre: «Meu Deus, porque Me abandonaste?».
Deste modo, podemos habituar-nos a viver com uma esperança cansada perante o futuro incerto e desconhecido, e isto faz com que se instale um pragmatismo cinzento no coração das nossas comunidades. Aparentemente tudo parece continuar dentro da normalidade, mas na realidade a fé deteriora-se e degenera.
Decepcionados com uma realidade que não compreendemos ou na qual pensamos já não haver lugar para a nossa proposta, podemos conferir «cidadania» a uma das piores heresias possíveis no nosso tempo: pensar que o Senhor e as nossas comunidades não têm nada para dizer nem dar a este mundo novo em gestação.
Então aquilo que um dia nasceu para ser sal e luz do mundo, acaba por oferecer a sua versão pior.
Humildade. Os adoradores que o Pai deseja
Luís Rocha e Melo, SJ, In Se tu soubesses o dom de Deus

Botticelli, Anunciação
Quem ora entende, sem grandes explicações, que a oração pertence à vida, nem pode nunca desligar-se dela.
Pelo contrário, quem ora dá rumo à vida; a vida é oração e a oração brota da vida, já que o essencial, na relação com Deus, é uma vida entregue.
O «aqui estou» dos profetas, ou o «eis-me aqui» de Maria, são a expressão verbal e orante de uma entrega sem condições. Quando o Senhor chama alguém à relação com Ele, no amor e na fidelidade, não chama a entregas parciais ou temporais. Chama à totalidade, como é próprio de amor total. Atitudes medianas ou ambíguas não são dignas do nosso Deus, nem da vocação a que somos chamados: predestinados para ser imagem idêntica à de seu Filho, somos chamados a coisas grandes, nada menos que a participar plenamente da santidade de Deus.
Não é monopólio dos conventos; é a vida dos baptizados, em cujo coração depositou o Senhor a vida trinitária, como semente destinada a crescer. «Sereis santos porque Eu sou o Senhor»
Ponto claro no caminho espiritual, do passado e do presente, é que para a santidade – a plenitude do amor de Deus em nós – se caminha na humildade, que tentámos descrever como sendo a outra face do amor, o esquecimento de si.
O Espírito sopra onde quer e os caminhos são variados; mudam culturas e linguagens, exprimem-se de muitas maneiras os homens e as mulheres de todos os tempos, mas vão bater no mesmo ponto; para viver o tudo há que passar pelo nada. O nada da adoração de si próprio, que torna possível a adoração em espírito e em verdade dos adoradores que o Pai deseja. «Nada, nada, nada», insistem os homens de Deus, sem sombras de niilismo ou pessimismo, porque o outro lado do nada é o Tudo.
Com base na cultura do seu tempo, mestres do passado cultivaram o desprezo de si, como expressão de humildade. São maneiras de falar próprias das antropologias dos tempos, incómodas em mundo que exalta, de todas as maneiras, os valores e a dignidade do homem.
A humildade aparece hoje como obra de arte antiga que precisa de restauro, pois a atitude espiritual a que os autores de todos os tempos dão tanta importância – e que se continua a chamar humildade – está no âmago do espírito de Jesus, proclamado nas bem-aventuranças. Não é arcaísmo que se possa deitar fora, nem questão facultativa, acessória ou periférica.
Quem caminha para o «nada», de que nos falam os místicos, aproxima-se de Deus. O espírito de Jesus – a humildade que tentamos descrever – só tem sentido em perspectiva religiosa, pois o nada é espaço do Tudo. Despojar-se ou esvaziar-se é deixar outras esperanças (pontos de apoio ou fundamentos de felicidade), para encontrar a Esperança e colocar em Deus a confiança única e total.