Domingo VI do Tempo Comum (PDF) TEXTO

Duccio di Buoninsegna, Tentação de Cristo
Tempo de conversão, de oração, de caridade concreta, precisamente para quem tem menos.
Um itinerário de quarenta dias que não mortifica, mas estimula a escolher o “mais”.
A escolher o estilo de vida mais austero. A renunciar às palavras em excesso, ao ruído, à utilização compulsiva do computador, ao envio de mensagens supérfluas.
A Quaresma regressa para despertar as nossas consciências. Para nos pedir um intenso compromisso espiritual, para reunir todas as nossas energias, com vista a uma profunda mudança da nossa maneira de pensar, de falar, de viver.
Leonardo Sapienza , Osservatore Romano
Deus estende a mão
Ermes Ronchi, in Avvenire

Mosaico medieval, Cristo e o leproso
Entra em cena um leproso, um desesperado que perdeu tudo: casa, trabalho, amigos, abraços, dignidade e até Deus. É um homem que se está a decompor estando vivo, para a sociedade é um pecador, recusado por Deus e castigado com a lepra.
Vem e aproxima-se de Jesus, e não deve, não pode, a lei impõe-lhe a segregação absoluta. Mas Jesus não escapa, não evita, não o manda embora, está de pé diante dele e escuta. O leproso devia gritar de longe, a quem encontrava, «imundo, contagioso»; em vez disso, tu a tu, sussurra: se quiseres, podes tornar-me puro.
«Se quiseres.» O leproso náufrago agarra-se a um «se», é o seu gancho no meio do Céu, terra firme depois do pântano. E parece-me que vejo Jesus vacilar diante do pedido submetido por esta criatura à deriva. Vacilar, como quem recebeu um murro no estômago, uma unhada no coração: «Foi tomado nas entranhas de compaixão».
«Se quiseres»… grande pedido: diz-me o coração de Deus! Que queres verdadeiramente para mim? Queres a lepra? Que eu seja a imundície da região? É Ele que envia o cancro? Jesus vê, detém-Se, comove-Se e toca. Desde há muito que ninguém ousava tocá-lo, a sua carne morria de solidão. Jesus estende a mão e toca o intocável, contra toda a lei e toda a prudência, toca-o enquanto ainda está contagioso; e é assim que começa a curá-lo, com uma carícia que chega antes da voz, com o dedo mais eloquente do que as palavras.
Tocar, experiência de comunhão, de corpo a corpo, acção sempre recíproca (toca-se e é-se tocado, incindivelmente), um comunicar a sua proximidade, um desflorar-se, um arrepio, um vibrar de Deus comigo, de mim com Ele.
Depois, a resposta belíssima, a pedra angular sobre a qual se apoia a nova imagem de Deus: «Quero!». Um verbo total, absoluto. Deus quer, está envolvido, importa-Se, está no seu coração, padece comigo, urge nele uma paixão por mim, um tormento e um apaixonar-se.
A segunda palavra ilumina a vontade de Deus: «Sê purificado». Deus é intenção de bem. Ninguém é recusado. Segundo a lei, o leproso estava excluído do templo, não podia aproximar-se de Deus até que estivesse puro. Ao contrário, naquele dia acontece a reviravolta: aproxima-te de Deus e serás purificado. Acolhe-O e serás curado.
E mandou-o embora, com tom severo, ordenando-lhe que não dissesse nada. Mas o curado não obedece: e pôs-se a proclamar a mensagem. O excluído torna-se fonte de espanto. Exibe a sua felicidade, a sua experiência feliz de Deus.
Antes, tinha de fugir das povoações, e agora é precisamente nas povoações que entra, procura as pessoas de quem antes tinha de fugir, para dizer que mudou tudo, porque mudou, com Jesus, a imagem de Deus.
Cuidar da vida frágil
José Tolentino de Mendonça, Expresso
Guardo em mim uma gratidão para com a enfermeira que, há uns anos, vendo a minha angústia por não estar a conseguir ajudar uma pessoa de família a encontrar o que então me parecia um equilíbrio psíquico ao seu alcance, me disse: “Perceba que isto não é ela, mas a doença dela.”
É verdade: levamos muito tempo a perceber o óbvio. Porque sabemos mais ou menos cuidar de nós próprios e sustentar a nossa autonomia, julgamos saber automaticamente cuidar dos outros. E não é assim. O cuidado requer, como tudo na vida, uma aprendizagem. Mas é um dado universal: todos podemos aprender.
O cuidado não é apenas uma espécie de técnica de manutenção. Certamente há uma dimensão técnica importante no cuidado, mas ele não se realiza humanamente sem a escuta, o reconhecimento do outro, a empatia, a solicitude, a participação ou a delicadeza.
No princípio do cuidado está a activação da nossa responsabilidade pelo outro. Como no seu oposto está a indiferença, o abandono ou o descarte.
Penso nos largos milhares de cuidadores (na verdade, de cuidadoras, pois as estatísticas dizem que mais de 60% são mulheres) que, entre nós, se ocupam dos pais ou familiares doentes, que tratam de jovens e adultos portadores de deficiência, acompanhando-os jornada após jornada.
Prestando atenção à toma dos medicamentos, preparando as refeições, ajudando-os a caminhar um pouco, estimulando-os com conversas, roubando para eles, de qualquer parte, pequenos fragmentos de azul e recebendo em troca cintilações que, na sua intensidade, se diria não serem apenas cintilações. Lutando muitas vezes, em solidão, para afirmar o valor da vida humana numa sociedade que em vez de simplificar os auxílios, burocratiza, distancia-se e dificulta.
Porém, não tenhamos dúvidas: é o cuidado a grande experiência humanizadora, o lugar do mundo onde mais aprendemos, o grande espaço de sabedoria autêntica. Sem a cultura do cuidado não haverá futuro e tudo representará sempre mais um beco sem saída. Há quem contraponha: “O cuidado só por si não oferece a solução.” A resposta é: pelo menos oferece caminhos.
A gramática bíblica traduz este debate num fundamental conceito, que em hebraico se diz tiqqun. O termo tiqqun, mesmo se inclui outros significados, é normalmente traduzido como “reparação” ou “restauração”. A história narrada na Bíblia não é uma história linear ou que escolha omitir a sua condição vulnerável, trágica e ferida.
Pelo contrário: os livros sagrados constituem documentos inapagáveis do sofrimento humano no tempo; contam avalanchas e razias, perdas de estatuto político e deportações, a dor dos prisioneiros e a mortificação incomensurável dos escravos; falam de doenças individuais, de infortúnios e desastres, de cercas sanitárias (como no caso da lepra) e de histórias clínicas agravadas. Mas na concepção bíblica a vida não se resume ao enredo niilista dos seus agravos. A vida é também prática e esperança de reparação. Ora, uma forma histórica de reparação devida à dor humana é precisamente o cuidado.
Em Portugal, com solavancos e atrasos, lá se chegou a uma das leis que correspondem efectivamente a um avanço civilizacional: a aprovação do Estatuto do Cuidador Informal. Estima-se que possam reclamar o direito a ele (porque, em concreto, já o exercem) cerca de 800 mil portugueses. Contudo, a lentidão dos processos administrativos e a escassa informação pública têm provocado uma ralentização inaceitável.
Até meio de Dezembro passado, o número dos cidadãos que pediu o documento de acesso ao estatuto não chegava aos 4 mil. E este facto torna ainda mais violenta e incompreensível a pressa em aprovar uma lei desumana como a da eutanásia.