Baptismo do Senhor (PDF)  TEXTO

Giotto, Baptismo do Senhor

Jesus não se dissocia de nós, considera-nos irmãos.

E assim, juntamente com Ele, torna-nos filhos de Deus Pai. Esta é a revelação e a fonte do amor autêntico.

Não vos parece que neste nosso tempo há necessidade de um suplemento de partilha fraternal e amorosa? Que todos nós precisamos de um suplemento de caridade?

Não daquela que se contenta com a ajuda extemporânea, que não compromete, que não põe em jogo, mas daquela caridade que compartilha, que assume as dificuldades e o sofrimento do irmão.

Que sabor adquire a vida, quando nos deixamos inundar pelo amor de Deus!

Papa Francisco, Festa do Baptismo do Senhor, 2014 (excertos)

 

Cada um de nós é filho predilecto de Deus

Ermes Ronchi

Raphael, Jesus em oração no Getsmani

Jesus coloca-se na fila com os pecadores, ele que era o puro de Deus, na fila, como o último de todos. E entra no mundo desde o lugar mais raso, para que ninguém O sinta distante, para que ninguém se sinta excluído.

Jesus entre os pecadores está fora do seu lugar, como se a ordem normal das coisas tivesse sido transposta. João Baptista não compreende e retrai-se, mas Jesus responde-lhe que a ordem justa das coisas é mesmo essa: «Deixa por agora; convém que assim cumpramos toda a justiça».

A nova justiça consiste nesta inversão que anula a distância entre o Puro e os impuros, entre Deus e o homem.
E eis que se abriram os céus e vê-se o Espírito de Deus – que é a plenitude do amor, da energia, da vida de Deus – descer como uma pomba sobre Ele. E uma voz dizia: «Este é o Filho meu, O amado: n’Ele pus toda a minha complacência».

Este acontecimento excepcional, que ocorre num lugar comum, e não no espaço do sagrado, o rasgar dos céus com a declaração de amor de Deus e o voo de asas abertas do Espírito, aconteceu também para nós; o que o Pai dá a Jesus, é dado a todos.
Garante-o uma expressão emocionante de Jesus: que eles saibam, Pai, «que os amaste a eles como a Mim» (João 17, 23). Deus ama-nos como amou Jesus, com a mesma intensidade, a mesma paixão, o mesmo arrebatamento.

Deus prefere cada um de nós, cada um é o seu filho predilecto. Para o Pai, eu como Jesus, a mesma declaração de amor, as mesmas três palavras: Filho, amado, minha complacência.
“Filho” é a primeira palavra. Um termo técnico na linguagem bíblica, de significado preciso: é aquele que realiza as mesmas obras do pai, que faz aquilo que o pai faz, que se lhe assemelha em tudo.

“Amado”: Antes que tu ajas, antes de todo o mérito, quer o saibas ou não, a cada acordar o teu nome para Deus é “amado”. Imerecido, prejudicial, imotivado amor.

“Minha complacência”. Termo fora do comum mas belíssimo, que deriva do verbo “agradar”: tu agradas-me, fazes-me feliz, é belo estar contigo. Mas pode o Pai tirar tal alegria, tal satisfação, desta cana frágil que sou eu, sempre pronta a quebrar-se, desta torcida fumegante?
Todavia, a sua delícia é estar junto dos seres humanos (cf. Provérbios 8, 31), estar comigo. No nosso Baptismo, exactamente como no rio Jordão, uma voz repetiu: Filho, Tu assemelhas-Te a Mim, eu amo-Te, Tu dás-Me alegria. Tens dentro de Ti a respiração do céu, o sopro de Deus que Te envolve, Te modela, transforma pensamentos, afetos, esperanças, Te faz semelhante a Mim.

A cada manhã, mesmo nas mais escuras, começa o teu dia ouvindo, antes de tudo, a voz do Pai: Filho, amor meu, minha alegria. E sentirás as trevas que se dissipam e o amor a estender as suas asas dentro de ti.

Pobreza espiritual, caminho de vida

Tolentino de Mendonça, Capela do Rato, 2014

Deus tem de ser um caminho para cada pessoa. Não vivemos encostados à experiência de ninguém. Somos autónomos também no caminho da fé. A nossa relação com Deus é comunitária, sem dúvida, mas antes de tudo é pessoal.

Deus não Se revelou primeiro a um povo, mas a uma pessoa: Abraão, Moisés,… Um por um. Deus sabe o nosso nome, sabe o que somos. Isto também tem a ver com a aceitação da pobreza. É na pobreza que está a riqueza enquanto ponto de partida.

A par da autonomia, temos de viver na consciência de que dependemos inteiramente do amor de Deus. «Não temas, pequenino rebanho, porque agradou a teu Pai dar-te o Reino.»

O que Maria canta e testemunha no seu “Magnificat” é a reviravolta de Deus, que pôs os olhos na pobreza da sua serva, que retira os poderosos dos tronos e neles faz sentar os humildes, que despede os ricos de mãos vazias e enche os pobres das suas riquezas.

Um coração pobre está disponível para viver a alternativa de Deus, a lógica nova de Deus, as transformações, o modo de ver e actuar de Deus na história.
Jesus também nos ensina o caminho da pobreza espiritual. Quando atravessa a Samaria, acompanhado pelos discípulos, sente fome. Por vezes a fome é um momento espiritual importante. Não só a fome biológica, mas também a necessidade de outra coisa.

Os discípulos vão à aldeia buscar comida e, ao regressar, Jesus fala-lhes de outro alimento: fazer a vontade do Pai.
O verdadeiro alimento é vivermos a partir da condição de sermos filhos, de sermos filhos amados por Deus.

Se vivemos a partir da convicção profunda de que é o amor de Deus que nos funda – o que o Pai diz a Jesus, «Tu és o meu filho muito amado, em Ti coloco o meu amor» -, a nossa existência será completamente diferente. Deixaremos de andar de equívoco em equívoco. Saberemos verdadeiramente qual é o nosso alimento, o que nos sacia, o que é decisivo para nós.

A pobreza espiritual também se expressa na aceitação de si. Não temos apenas mal-entendidos com os outros. Por vezes, o maior e o mais difícil mal-entendido é connosco próprios. Não nos aceitamos, não nos abraçamos, não nos acolhemos, não nos perdoamos. Aceitar-me no que sou e não sou, no que fui, no que não fui, no que não consegui, no que correu bem e no que correu mal, na fraqueza e na fragilidade.

Como é que se torna fecunda a vida pobre? Na aceitação confiante de si. Como diz S. Paulo na segunda carta aos Coríntios: «Trazemos em vasos de barro o nosso tesouro». E é sempre assim. Temos de aceitar o tesouro, mas também o barro, o barro que se quebra, o barro que se cola, o barro que não tem remédio, o barro que fica ferido.
O poeta Manoel de Barros é uma das grandes figuras espirituais do nosso tempo: «Prefiro as máquinas que servem para não funcionar». Isto exige uma conversão. Porque nós preferimos o que funciona. «Porque cheias de areia, de formigas e de musgo, elas podem um dia milagrar flores».

Há um milagre que só nos chega pela pobreza.
Esta pobreza espiritual é chamada a expressar-se num estilo de vida essencial. É importante que cada pessoa se pergunte o que quer testemunhar. Porque nós estamos sempre a testemunhar.

O que possuímos, possuí-nos.
Queremos viver para dar testemunho do amor e do acolhimento, ou queremo-nos protegidos através do conforto e da segurança?

Rezemos a nossa vida. Perguntemo-nos o que nos alimenta, o que nos toca, perguntemos se só vemos a meta ou se aceitamos a nossa vida pobre e vazia. Perguntemos se em cada dia franqueamos as muralhas do nosso coração.

 

Arquivo de Folhas Informativas anteriores a 25.11.2018