Domingo III da Quaresma (PDF)  TEXTO

Rembrandt, Jesus expulsa vendilhões do Templo

 

A atitude de Jesus exorta-nos a levar a nossa vida não à procura das nossas vantagens e interesses, mas pela glória de Deus, que é o amor.

Somos chamados a ter sempre presentes aquelas palavras incisivas de Jesus: «Não façais da casa do meu Pai uma casa de negociantes!».

Estas palavras ajudam-nos a afastar o perigo de fazer também da nossa alma, que é a morada de Deus, um lugar de mercado, vivendo continuamente em busca da nossa vantagem, e não no amor generoso e solidário.

Papa Francisco

 

 

Que saiam os vendedores, entrem os pobres

Ermes Ronchi, in Avvenire

Enoch Wood Perry, Oração matinal

Em todo o mundo os católicos celebram a 09 de Novembro a dedicação da catedral de Roma, S. João de Latrão, como se fosse a sua igreja, raiz de comunhão de um canto ao outro da Terra. Não celebramos, portanto, um templo de pedras, mas a grande casa de um Deus que para sua morada escolheu o vento livre, e fez do homem a sua casa, e da Terra inteira a sua igreja.

No Evangelho, Jesus com um chicote na mão. O Jesus que não esperas, o corajoso cujo falar é sim, sim, não, não. O mestre apaixonado que usa gestos e palavras com combativa ternura. Jesus nunca passivo, nunca desafecto, não se resigna às coisas como estão: Ele quer mudar a fé, e com a fé mudar o mundo. E fá-lo com gestos proféticos, não com uma boa vontade genérica.

Uma hora depois, provavelmente, os vendedores, recuperadas as pombas e as moedas, teriam reocupado os seus lugares. Tudo como antes, então? Não, o gesto de Jesus chegou até nós, profecia que sacode os vigilantes dos templos, e também a mim, do risco de tornar a fé num mercado.

Jesus persegue os vendedores porque a fé tornou-se dinheiro, Deus tornou-se objecto de compra e venda. Os astutos usam-no para ganharem, os piedosos e devotos para se perdoarem: eu dou-Te oração, Tu, em troca, dás-me graças; eu dou-Te sacrifícios, Tu dás-me salvação.

Persegue os animais das ofertas antecipando a revolução de fundo que trará com a cruz: Deus não nos pede mais sacrifícios, mas sacrifica-Se a Si próprio por nós. Não pretende nada, dá tudo.

Fora com os mercadores, então. A Igreja tornar-se-á bela e santa não ao acrescentar património e meios económicos, mas se cumprir as duas acções de Jesus no átrio do templo: expulsar os vendedores, deixar entrar os pobres.

Ele falava do templo do seu corpo. O templo do corpo… templo de Deus somos nós, é a carne do homem. Tudo o resto é decorativo. Templo santo de Deus é o povo, diante do qual «devemos descalçar os sapatos», como Moisés diante da sarça ardente, «porque é terra santa», morada de Deus.

Dos nossos templos magnificentes não restará pedra sobre pedra, mas nós permaneceremos, casa de Deus para sempre. Há graça, presença de Deus em cada ser. Passamos, então, da graça dos muros à graça dos rostos, à santidade dos rostos.

Se pudéssemos começar a caminhar na vida, nas ruas da nossa cidade, dentro da nossa casa e, delicadamente, na vida dos outros, com veneração pela vida de Deus que neles habita, tirando os sapatos como Moisés diante da sarça, então entenderíamos que estamos a caminhar dentro de uma única, imensa catedral. Que todo o mundo é céu, céu de um só Deus.

 

Penitência forçada, confinamento pascal

Pe. José Frazão Correia, sj, excertos

A vida é bela. (…)Mas a vida também é tão difícil. (…)
Os limites que nos fazem insinuam desconfianças, despertam ciúmes, incitam a agressões e transgressões.

Aí, quando o custo encobre a bênção que a vida é, tendemos a afundar-nos, como se não houvesse mais nada, ou a evadirmo-nos, fazendo de conta, ou a agredir como forma de protecção.

Reaprender a professar a confiança elementar na vida, bendizendo a sua graça e atravessando com esperança o seu custo, sem rendição nem alienação, torna-se um dever de humanidade. E um dever de crentes. A profissão de fé em Deus está muito próxima da declaração de amor à vida. Tudo isto no quotidiano e no simples.

O extraordinário tem sido o nosso ordinário.
Não interromperemos nada. A “quaresma religiosa” chega, pois, quando já estamos saturados de uma longa e rigorosa “quarentena civil”. Há muito que nos estamos a privar de encontros à mesa. Cancelamos festas e celebrações. Não nos abraçamos nem beijamos. Passámos a vestir roupa de trazer por casa. Passeamos por tempo limitado. Andamos de luto, por pessoas próximas e por tantíssimas outras que não conhecemos.
De que modo poderá esta quaresma-em-quarentena ser caminho percorrido com os pés na terra e tornar-se exercício litúrgico e espiritual com sentido e com fruto? Que desejos cultivar?

A que práticas sensatas nos poderemos dispor, quando a penitência já está garantida?
Observo três exercícios de reparação. Reparação, de olhar com atenção. Reparação, de restauro. Reparar no quotidiano e no simples da vida, será um acto de resistência verdadeiramente espiritual.

Reparar nos/os sentidos
Olhar com mais atenção para entrever. Mesmo em casa, haverá sempre uma janela que dá para fora. Quanta vida acontece diante dos nossos olhos.
Escutar com mais vagar, a começar por aqueles com quem falamos diariamente, para pressentir o sentido no dito e do não dito de tantas palavras e de outros tantos silêncios. E da música, claro.

Tocar com mais cuidado, para reconhecer texturas, rugosidades, contornos, temperaturas. E quanto precisamos da inteligência do tacto, para não ficarmos distantes e insensíveis, em tempos em que os contactos físicos são arriscados e, por isso, inibidos e mortificados.

Saborear, para saber a graça da vida e cultivar as suas promessas. As coisas e os momentos simples do quotidiano são suficientemente saborosos e perfumados para saberem bem. Será uma questão de atenção. E de tempo. Porque as coisas e os momentos pedem tempo para dizer o que têm a dizer. E nós precisamos de tempo para as perscrutar e, reconhecidos, acolher e saborear.

Reparar no/o bem possível
Precisamos também de sonhos largos, de grandes desejos. É bom que nos movamos e impliquemos na procura do bem maior. O tempo que vivemos pode ser particularmente favorável para procurar reconhecer com benevolência e alegrar-se genuinamente com o bem possível. Com gratidão pelo que existe, mesmo que fosse pouco ou diferente do desejável. Com a humildade da aceitação e a paciência da espera.

Reparar no/o processo que somos
Somos processo lento de reelaboração do que somos. A vida e a fé são processo. Não são lugares parados que se ocupam e se repetem, acabados. São itinerários abertos que se percorrem. Por isso, têm sempre algo de imprevisível. Implicam o corpo, a mente, o espírito. E, mais uma vez, pedem tempo.

 

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