Domingo V do Tempo Comum (PDF) TEXTO

Briton Rivière, Cristo no Deserto
É boa coisa orar bem cedo pela manhã, antes que o mundo se encha de disparates. A vida torna-nos a todos guerreiros. Para viver temos de usar a arma mais poderosa. Essa arma é a oração.
Pinchas de Korec
A vida diária, sobretudo a contemporânea, é uma luta.
Somos assediados, tentados, esmagados, confusos, desorientados.
É preciso, bem cedo pela manhã, quando o espaço do dia ainda está limpo, permanecer em oração.
Gianfranco Ravasi
Uma jornada típica de Jesus
Ermes Ronchi, in Avvenire

Rembrandt, Cristo cura sogra de Pedro
Marcos apresenta o relato da jornada-tipo de Jesus, ritmada sobre as suas três ocupações preferidas: mergulhar na multidão e curar, fazer com que as pessoas fiquem bem; mergulhar na fonte secreta da força, a oração; e daí regressar envolvido em Deus e anunciá-l’O.
Tudo parte da dor do mundo. E Jesus toca, fala, agarra as mãos. O milagre é, na sua beleza jovem, o início da boa nova, o anúncio de que é possível viver melhor, encontrar vida em plenitude, viver uma vida bela, boa, alegre.
A sogra de Simão estava de cama com febre, e logo Lhe falam dela. Milagre tão pobre de expectativas, tão pouco vistoso, onde Jesus nem sequer fala. Contam os gestos. Não procuramos diante da dor inocente respostas que não existem, mas procuramos os gestos de Jesus.
Ele escuta, aproxima-Se, toma pela mão. Mão na mão, como força transmitida a quem está exausto, como pai ou mãe a dar confiança ao filho pequeno, como um desejo de afecto. E levanta-a. É o verbo da ressurreição. Jesus levanta, eleva, faz erguer a mulher, devolve-a à sua postura direita, ao orgulho do fazer, de cuidar.
A mulher levantou-se e começou a servir. O Senhor tomou-te pela mão, faz tu também o mesmo, toma alguém pela mão. Quão cheia está uma mão. Um gesto assim pode levantar uma vida!
Quando ainda estava escuro, saiu para um lugar secreto e lá orava. Um dia e uma noite para pensar no homem, uma madrugada e uma aurora para pensar em Deus. Há na vida fontes secretas, a frequentar, porque eu vivo das minhas fontes. E a primeira entre elas é Deus.
Jesus, assediado de dor, num crescente turbilhão (à noite a porta de Cafarnaúm transborda de multidão e de dor, e depois de vida reencontrada), sabe criar espaços.
Ele ensina-nos a criar espaços secretos que dão saúde à alma, espaços de oração, onde nada é mais importante do que Deus, onde Lhe digo: estou diante de Ti; por um tempo que sei ser breve não quero nada antes de Ti; durante estes poucos minutos nada vem antes de Ti. É a nossa declaração de amor.
Por fim o terceiro momento. Mestre, que fazes aqui? Todos Te procuram. E Ele: vamos para outro lugar. Subtrai-Se, não procura um banho de multidão. Procura outros espaços para ser dador de vida, procura as fronteiras do mal para o deter, procura outros homens para os fazer estar bem.
Vamos nós também a outros lugares para erguer outras vidas, apertar outras mãos.
A fé é claramente nocturna
José Tolentino de Mendonça, entrevistado por Carlos Vaz Marques
A propósito do livro “O Sono do Viajante”, retiramos excertos da entrevista de Carlos Vaz Marques ao autor, José Tolentino de Mendonça.
Este é um livro escrito a meio da vida e penso que é atravessado por esses dois sentimentos: entusiasmo e receio.
Por um lado, uma capacidade de espanto que penso que aumenta com o tempo. Uma capacidade de deslumbramento perante o mundo, perante a realidade. Ao mesmo tempo sentindo que o tempo é escasso, que o tempo de vigília acaba por ser pequeno perante o milagre que nos é dado testemunhar, verificar: no fundo, o milagre da própria vida nos seus detalhes mais ínfimos.
Por um lado é por esse desejo de vigília, de manter os olhos abertos que não há tempo para o sono. Mas por outro lado também há essa outra dimensão de um sentido de perda, de uma indagação mais profunda, de uma vigília forçada que penso que a nossa condição humana, mais tarde ou mais cedo, acaba por nos impor.
Sendo o dia, por excelência, o lugar da tarefa de existir, dos nossos tráficos e trânsitos, do nosso empenhamento, do nosso acto de criar o mundo, talvez a noite seja o melhor espelho para dizer o Homem.
A solidão que a noite implica, como contexto, e ao mesmo tempo a perspectivação daquilo que é o Homem, o desenho mais exacto de nós, só a câmara escura da noite é capaz de revelar. No sentido de que o Homem está só com o Universo. O seu contexto como que se apaga. É aquilo que diz Borges: a História Universal é contada por um só homem. Como se isto se pudesse repetir em cada um. Nesse sentido, a noite é esse estado de consciência profunda de si, em que o Homem está só perante o horizonte de sentido ou perante o silêncio da própria vida. Está só debaixo dos céus. É nesse momento, penso, que o poema deflagra.
A noite é o lugar da experiência mais funda. A noite, como dizia São João da Cruz, é o tempo da casa sossegada.
O silêncio também tem a ver com a noite. Há um tipo de silêncio que só a noite tem. Um silêncio onde sentimos o próprio mundo, onde sentimos o tempo de uma outra forma. Esse silêncio interessa-me muito como lugar de visibilidade. Penso que a noite é um lugar onde se vê melhor o próprio silêncio.
Paradoxalmente, essa insistência no silêncio toma-nos mais conscientes de como ele hoje é um bem escasso.
Penso que a função da poesia é reabilitar o silêncio, é perfurar o ruído – o ruído que somos, o ruído que nos cerca – até encontrarmos camadas subterrâneas de silêncio.
O silêncio é um caminho. Não basta, por exemplo, estarmos calados para estar em silêncio. Podemos estar calados e o rumor ser ensurdecedor. Há uma qualidade de silêncio que é uma conquista, que é um processo em que nós entramos.
A fé tem a ver com a noite. A luz só se vê à noite, como as estrelas. As estrelas brilham no céu nocturno. A luz da fé brilha na noite. A fé é um lugar sem certezas. A fé é um lugar de abertura. A fé é uma forma de hospitalidade radical. Para mim, as grandes imagens bíblicas da fé são as da luta de Jacob com o anjo (quando ele, no amanhecer ainda escuro, ao atravessar um riacho, luta com o próprio Deus sem saber que está a lutar com Deus; mas essa imagem do combate nocturno, agónico, um bocado imperceptível mas que nos fere e deixa depois no nosso corpo a ferida, é a imagem mais prodigiosa do que é a fé no Antigo Testamento) e a do percurso que as mulheres fazem de manhãzinha, com o dia ainda muito escuro, a caminho de um sepulcro que encontram vazio.
A fé tem necessariamente esse lado nocturno de indagação e de expectativa. A fé é uma expectativa. E é nesse sentido a imagem do salto no escuro.