Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor (PDF)  TEXTO

Sir Edward Coley Burne-Jones, Na manhã da Ressurreição

O Ressuscitado é o Crucificado; e não outra pessoa.
Indeléveis no seu corpo glorioso, traz as chagas:
feridas que se tornaram frestas de esperança.

A ressurreição de Cristo é a vitória do amor sobre a raiz do mal,
uma vitória que não «salta» por cima do sofrimento e da morte,
mas atravessa-os abrindo uma estrada no abismo, transformando
o mal em bem: marca exclusiva do poder de Deus.

PAPA FRANCISCO, Páscoa 2020

 

Porque deixámos de saber espantar-nos diante de Jesus?

Papa Francisco, Páscoa 2020

Lambert Sustris, Noli mi tangere

Muitos admiram Jesus: falou bem, amou e perdoou, o seu exemplo mudou a História… e assim por diante. Admiram-n’O, mas a sua vida não muda: a paralisia espiritual, a resistência à conversão, as expectativas inabaláveis, a incapacidade do espanto, que marcaram o acolhimento do Messias nas ruas de Jerusalém poucos dias antes da sua crucificação, subsistem hoje, inclusive entre os crentes, tornando-os impermeáveis à surpresa, à inovação, à desordem que Ele continua a trazer ao mundo.

À entrada da “Cidade Santa”, Jesus parece ser recebido por uma multidão de cegos: olham-n’O, mas não o vêem, divisam o seu rosto mas desconhecem o seu coração. A sua gente espera para a Páscoa o libertador poderoso, mas Jesus vem para realizar a Páscoa com o seu sacrifício. A sua gente espera celebrar a vitória sobre os romanos com a espada, mas Jesus vem celebrar a vitória de Deus com a cruz.

O que inquieta não é só este engano, que não obstante terem passado dois mil anos, continua a desdobrar-se em ilusórias expectativas dos cristãos sobre quem é Jesus, mas também a brusca mudança de opinião: Que acontece àquela gente, que em poucos dias passou de dar hossanas a Jesus a gritar “crucifica-O”? O que aconteceu?
Aquelas pessoas seguiam mais uma imagem de Messias, que não o Messias. Admiravam Jesus, mas não estavam prontas a deixar-se espantar por Ele.
O espanto é diferente da admiração.
A admiração pode ser mundana, porque busca os próprios gostos e as próprias expectativas; o espanto, pelo contrário, permanece aberto ao outro, à sua novidade.

Para que neste ano de 2021 a atitude dos cristãos seja outra, é preciso um coração novo. Porque admirar Jesus não basta. É preciso segui-l’O no seu caminho, deixar-se colocar em discussão por Ele: passar da admiração ao espanto.
Como é difícil que o assombro de Jesus expulse o entorpecimento e o marasmo, na vida pessoal e na vida da Igreja; e como ele é tão urgente.
A vida cristã, sem espanto, torna-se cinzenta.
Como se pode testemunhar a alegria de se ter encontrado Jesus se não nos deixamos espantar a cada dia pelo seu amor surpreendente, que nos perdoa e faz recomeçar?

Se a fé perde o espanto, torna-se surda: deixa de sentir a maravilha da Graça, deixa de sentir o gosto do Pão da vida e da Palavra, deixa de perceber a beleza dos irmãos e o dom da criação. E não há outro caminho a não ser o de refugiar-se nos legalismos, nos clericalismos e em todas estas coisas que Jesus condena no capítulo 23 de Mateus.
Será esta mais uma Semana Santa incapaz de sacudir a vida? Ou conseguiremos ainda deixar-nos comover pelo amor de Deus? Porque deixámos de saber espantar-nos diante d’Ele? Porquê?
Talvez porque a nossa fé tenha sido desgastada pela habituação. Talvez porque permaneçamos fechados nas nossas lamentações e nos deixemos paralisar pelas nossas insatisfações. Talvez porque tenhamos perdido a confiança em tudo e nos creiamos até errados. Mas por trás destes “talvez” há o facto de não estarmos abertos ao dom do Espírito, que é aquele que nos dá a graça do espanto.

O que mais espanta no Senhor e na sua Páscoa?
O facto de Ele chegar à glória pela via da humilhação. Ele triunfa ao acolher a dor e a morte, que nós, escravos da admiração e do sucesso, evitamos.
Em que consistiu a humilhação que continua a desconfigurar o que muitos esperam de Deus?
Ver o Todo-poderoso reduzido a nada.

Vê-l’O, a Palavra que sabe tudo, ensinar-nos em silêncio na cátedra da cruz. Ver o rei dos reis que tem por trono um patíbulo. Ver o Deus do universo despojado de tudo. Vê-l’O coroado de espinhos em vez de glória. Vê-l’O, a bondade em pessoa, insultado e pisado.
A interpelação é inevitável, então como hoje, e seguramente para sempre: Porquê toda esta humilhação? Porquê, Senhor, deixaste que te fizessem tudo isto?

Fê-lo por nós, para tocar até ao fundo a nossa realidade humana, para atravessar toda a nossa existência, todo o nosso mal. Para aproximar-Se de nós e não nos deixar sós na dor e na morte. Para recuperar-nos, para salvar-nos.

Jesus sobe à cruz para descer ao nosso sofrimento. Prova os nossos piores estados de alma: o fracasso, a rejeição de todos, a traição de quem lhe quer bem e até o abandono de Deus. Experimenta na sua carne as nossas contradições mais lacerantes, e assim redime-as, transforma-os. O seu amor aproxima-se das nossas fragilidades, chega aonde nos mais envergonhamos.
Por isso, quem acredita em Deus sabe que nunca está só: Deus está connosco, em cada ferida, em cada medo; nenhum mal, nenhum pecado tem a última palavra. Deus vence, mas a palma da vitória passa pelo madeira da cruz. Porque as palmas e a cruz estão juntas.

É também a graça do espanto que permite compreender que amar Jesus passa por acolher quem é descartado, aproximar-se de quem é humilhado pela vida, porque Ele está nos últimos, nos rejeitados, naqueles que a nossa cultura farisaica condena – e entre estes não se pode deixar de pensar nas pessoas atingidas pelas muitas “condenações” proclamadas pela Igreja, desde a sua origem aos nossos dias.

A ideia de um Deus a adorar e a temer enquanto poderoso e terrível não tem cabimento no cristianismo e é imune aos mal-entendidos, porque Ele desvelou-Se e reina apenas com a força desarmada e desarmante do amor.

 

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