V Domingo da Quaresma (PDF)  TEXTO

Pieter Bruegel, o Novo, Jesus e a mulher adúltera

Jesus ergue-se e não responde directamente à questão que Lhe foi posta, mas faz uma afirmação que contém em si também uma pergunta: «Quem de vós está sem pecado, lance em primeiro lugar a pedra contra ela».

Depois inclina-Se de novo e volta a escrever na terra.

Assim uma palavra de Jesus, uma palavra só mas incisiva (ao ponto de se ter tornado proverbial) e autêntica, uma daquelas perguntas que nos sacodem e nos fazem ler a nós próprios em profundidade, impede aqueles homens de cometer violência em nome da Lei.

Só Deus, e portanto só Jesus, poderia condenar aquela mulher.

Enzo Bianchi, 2016

 

Oração de consagração da Rússia e Ucrânia

Papa Francisco, 25 de Março 2022

 

Ó Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe, recorremos a Vós nesta hora de tribulação.
Vós sois Mãe, amais-nos e conheceis-nos:
de quanto temos no coração, nada Vos é oculto.
Mãe de misericórdia, muitas vezes experimentamos a vossa ternura providente, a vossa presença
que faz voltar a paz, porque sempre nos guiais para Jesus, Príncipe da paz.

Mas perdemos o caminho da paz.
Esquecemos a lição das tragédias do século passado, o sacrifício de milhões de mortos
nas guerras mundiais.
Descuidamos os compromissos assumidos como Comunidade das Nações e estamos
a atraiçoar os sonhos de paz dos povos e as esperanças dos jovens.
Adoecemos de ganância, fechamo-nos em interesses nacionalistas, deixamo-nos ressequir pela indiferença e paralisar pelo egoísmo.

Preferimos ignorar Deus, conviver com as nossas falsidades, alimentar a agressividade, suprimir vidas e acumular armas, esquecendo-nos que somos guardiões do nosso próximo e da própria casa comum.
Dilaceramos com a guerra o jardim da Terra, ferimos com o pecado o coração do nosso Pai, que nos quer irmãos e irmãs.
Tornamo-nos indiferentes a todos e a tudo, excepto a nós mesmos.
E, com vergonha, dizemos: perdoai-nos, Senhor!

Na miséria do pecado, das nossas fadigas e fragilidades, no mistério de iniquidade do mal e da guerra, Vós, Mãe Santa, lembrai-nos que Deus não nos abandona, mas continua a olhar-nos com amor, desejoso de nos perdoar e levantar novamente. Foi Ele que Vos deu a nós e colocou no vosso Imaculado Coração um refúgio
para a Igreja e para a humanidade.

Por bondade divina, estais connosco e conduzis-nos com ternura mesmo nas curvas mais apertadas da história.
Por isso recorremos a Vós, batemos à porta do vosso Coração, nós os vossos queridos filhos que não Vos cansais de visitar em todo o tempo e convidar à conversão.
Nesta hora escura, vinde socorrer-nos e consolar-nos. Repeti a cada um de nós:
«Não estou porventura aqui Eu, que sou tua mãe?»

Vós sabeis como desfazer os emaranhados do nosso coração e desatar os nós do nosso tempo.
Repomos a nossa confiança em Vós.
Temos a certeza de que Vós, especialmente no momento da prova, não desprezais as nossas súplicas e vindes em nosso auxílio.

Assim fizestes em Caná da Galileia, quando apressastes a hora da intervenção de Jesus e introduzistes no mundo o seu primeiro sinal.
Quando a festa se mudara em tristeza, dissestes-Lhe: «Não têm vinho!». Ó Mãe, repeti-o mais uma vez a Deus, porque hoje esgotamos o vinho da esperança, desvaneceu-se a alegria, diluiu-se a fraternidade.
Perdemos a humanidade, malbaratamos a paz.
Tornamo-nos capazes de toda a violência e destruição.
Temos necessidade urgente da vossa intervenção materna.

Por isso acolhei, ó Mãe, esta nossa súplica:
Vós, estrela do mar, não nos deixeis naufragar na tempestade da guerra;
Vós, arca da nova aliança, inspirai projectos e caminhos de reconciliação;
Vós, «terra do Céu», trazei de volta ao mundo a concórdia de Deus;
Apagai o ódio, acalmai a vingança, ensinai-nos o perdão;
Libertai-nos da guerra, preservai o mundo da ameaça nuclear;
Rainha do Rosário, despertai em nós a necessidade de rezar e amar;
Rainha da família humana, mostrai aos povos o caminho da fraternidade;
Rainha da paz, alcançai a paz para o mundo.

O vosso pranto, ó Mãe, comova os nossos corações endurecidos. As lágrimas, que por nós derramastes, façam reflorescer este vale que o nosso ódio secou.
E, enquanto o rumor das armas não se cala, que a vossa oração nos predisponha para a paz.
As vossas mãos maternas acariciem quantos sofrem e fogem sob o peso das bombas.
O vosso abraço materno console quantos são obrigados a deixar as suas casas e o seu país.
Que o vosso doloroso Coração nos mova à compaixão e estimule a abrir as portas
e cuidar da humanidade ferida e descartada.

Santa Mãe de Deus, enquanto estáveis ao pé da cruz, Jesus, ao ver o discípulo junto de Vós, disse-Vos: «Eis o teu filho!».
Assim Vos confiou cada um de nós.
Depois disse ao discípulo, a cada um de nós: «Eis a tua mãe!» (19, 27).
Mãe, agora queremos acolher-Vos na nossa vida e na nossa história.
Nesta hora, a humanidade, exausta e transtornada, está ao pé da cruz convosco.
E tem necessidade de se confiar a Vós, de se consagrar a Cristo por vosso intermédio.
O povo ucraniano e o povo russo, que Vos veneram com amor, recorrem a Vós, enquanto o vosso Coração palpita por eles e por todos os povos ceifados pela guerra, a fome, a injustiça e a miséria.

Por isso nós, ó Mãe de Deus e nossa, solenemente confiamos e consagramos ao vosso Imaculado Coração nós mesmos, a Igreja e a humanidade inteira,
de modo especial a Rússia e a Ucrânia.
Acolhei este nosso acto que realizamos com confiança e amor, fazei que cesse a guerra, providenciai ao mundo a paz.
O sim que brotou do vosso Coração abriu as portas da história ao Príncipe da Paz; confiamos que mais uma vez, por meio do vosso Coração, virá a paz.

Assim a Vós consagramos o futuro da família humana inteira, as necessidades e os anseios dos povos, as angústias e as esperanças do mundo.
Por vosso intermédio, derrame-se sobre a Terra a Misericórdia divina e o doce palpitar da paz volte a marcar as nossas jornadas.
Mulher do sim, sobre Quem desceu o Espírito Santo, trazei de volta ao nosso meio a harmonia de Deus. Dessedentai a aridez do nosso coração, Vós que «sois fonte viva de esperança».
Tecestes a humanidade para Jesus, fazei de nós artesãos de comunhão.
Caminhastes pelas nossas estradas, guiai-nos pelas sendas da paz. Amen.

 

Jejum, interioridade e compaixão

Carlos Maria Antunes

Rembrandt, Mulher adúltera

A multiplicidade, a dispersão e também as contradições dos nossos desejos fazem apelo a um processo de reconciliação. De nenhum modo se pretende dizer marginalização de algum sentimento que nos habite.
É importante afirmá-lo, porque existe uma tentação comum de separar bons e maus desejos.

Aliás, não o fazemos só com os nossos desejos. Gastamos uma boa parte da nossa energia a traçar fronteiras. Somos herdeiros de uma visão dualista do mundo e de nós próprios, geradora de tanto sofrimento.

Quantos de nós não carregámos, ou ainda carregamos, com o peso de um sentimento ou de um desejo que consideramos como mau? O moralismo é uma das piores ameaças a uma sã espiritualidade.

Não deixa espaço à indagação, fecha todas as possibilidades de descoberta, destrói a autonomia e a consequente liberdade do sujeito, pois apresenta-se a priori como uma sentença definitiva, interiorizada acriticamente como reflexo de um determinado contexto cultural. Deveríamos ser mais perscrutadores atentos da vida do que catalogadores.

Somos movimento, somos fluir, somos alternância. Somos gente em acontecimento. Temos ainda para aprender uma suavidade no olhar sobre nós próprios e sobre os outros.

Não terá sido esse o olhar de Jesus ante a mulher adúltera? Ele baixa os olhos, inclina-se para o chão, sabe que somos pó da terra. Recusa-se a julgar e a condenar. «Quem estiver sem pecado que lhe atire a primeira pedra!», criando assim um espaço de auto-interrogação, convidando a um peregrinar da lei para o coração, possibilitando que cada um se confronte com a sua própria contradição.

Ninguém sai condenado; todos partem, incluindo a mulher, num processo de reconstrução, que só o amor tornou possível.

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