Epifania do Senhor (PDF)  TEXTO

Pacino da Buonaguida, Adoração dos Magos

Sonhar um sonho impossível
carregar a dor das partidas
arder de uma qualquer febre
partir para onde ninguém parte
amar até à laceração
amar, mesmo em excesso, mesmo mal
tentar, sem força nem armadura,
alcançar a inacessível estrela.
Esta é a minha demanda:
seguir a estrela

JACQUES BREL

 

O inédito de Deus

Cardeal Tolentino de Mendonça

Sano di Pietro, Adoração dos magos

Nós celebramos o Natal do Senhor, fazemos do Natal o encontro da família.

E é muito belo. Mesmo quando é doloroso, é muito belo. A família encontrar-se, reunir-se, fazer um esforço para estar juntos, sentar-se à volta da mesa, sentir que é família, e todas as tradições nos fazem viver o aconchego daqueles que estão mais próximos de nós. Sentimos, de facto, que o Natal é uma festa, é um momento de alegria, é um dos pontos culminantes do nosso ano.

Porque, na comunhão fraterna, nós aproximamo-nos de Deus, avizinhamo-nos de Deus, damos glória a Deus. E, contudo, a Carta aos Efésios hoje lembra-nos, tal como a Festa da Epifania, a grande novidade de Jesus. Jesus não veio apenas para a nossa família, Jesus não veio apenas para o nosso círculo de conhecidos, Jesus não veio apenas para a minha paróquia, para a minha comunidade.

O nascimento de Jesus é uma verdade muito mais extensa, muito maior, muito mais transbordante. Porque Jesus veio para todos! E por isso é tão belo no presépio termos aqueles que não deviam estar, que não são da nossa família – os Reis Magos. São “outros”, são estranhos, são gentios, são pagãos; vêm sabe-se lá de onde, vêm à procura de estrelas, a tactear na noite escura. E, contudo, para nós a representação do presépio é também contar com eles, com a viagem que eles fazem até ao encontro de Jesus.

O que distingue o Cristianismo não é a crença no Deus único, porque nós partilhamos essa crença com outras tradições religiosas; não é apenas uma moral, não é apenas uma ética, porque nós encontramos em tantas outras tradições espirituais e humanas pessoas com uma elevação ética extraordinária. O que distingue o Cristianismo é o nosso centramento na pessoa de Jesus. E na revelação que Ele é para nós do amor de Deus, da Salvação de Deus. E Jesus faz escancarando as portas, derrubando as fronteiras, abrindo os corações à universalidade.

Então, o Natal para nós é também este desafio – nós, que vivemos o Natal na nossa família, não nos esqueçamos que pertencemos à grande família humana. Nós, que vivemos o particular, não nos esqueçamos do universal. Porque Jesus vem colocar no centro da nossa vida Deus – o olhar de Deus, o sorriso de Deus, a compaixão de Deus. Mas Deus não é monopólio de ninguém. Nem de nós. Deus não é uma verdade que tenhamos no bolso. Nós, que estamos aqui, nós somos buscadores, somos enamorados, somos peregrinos.

Nós não temos Deus! Nós andamos à sua procura, nós estamos de coração aberto. Também nós tacteamos, também nós duvidamos, também nós perguntamos. Mas nós estamos aqui sentindo-nos um povo que procura, um povo que busca. Porque Deus só tem filhos, só tem exploradores, só tem questionadores. Gente que procura. Não tem donos. E isto para nós é muito importante porque muitas vezes nós somos obstáculo ao encontro de Deus.

E temos de fazer sempre um mea culpa, porque muitas vezes nós privatizamos Deus. Deus é uma questão nossa, tem a ver connosco, faz muito sentido, mas não pensamos nessa experiência que nós fazemos e que é um grande dom – a fé é o maior dom. E esse dom que nos foi dado é uma responsabilidade muito grande. E essa responsabilidade começa por percebermos que aqueles que não têm fé também nos ensinam alguma coisa acerca de Deus. Os ateus, os não crentes, também têm uma palavra a dizer acerca de Deus.

E, se calhar nós, crentes, e não crentes, devíamo-nos sentar mais vezes a conversar sobre Deus. E conversar sobre Deus é conversar sobre isto que somos, este mistério que somos.

Em nós há uma sede, em nós há uma fome, em nós há um desejo, em nós há uma procura. Que não se consuma no imediato, no visível, no que podemos tocar. Nós somos seres carecidos de infinito, feridos pelo infinito. Com essa saudade, com esse desejo de Deus. Mas não apenas nós, que estamos aqui. Nós e aqueles que não estão aqui. E aqueles que nunca colocarão os pés numa igreja. E aqueles que olham com desconfiança para os nossos ritos e práticas. Deus também é um património deles! E nós precisamos aprender, ouvir, escutar, conversar com ele acerca de Deus.

Por outro caminho

Papa Francisco 2020

Mary Kenny, Adoração dos Magos

No final da narração evangélica, diz-se que os Magos «avisados em sonhos para não voltarem junto de Herodes, regressaram ao seu país por outro caminho».

Estes sábios, vindos de regiões distantes, após terem viajado muito, encontram Aquele que queriam conhecer, depois de O terem procurado durante muito tempo, certamente até com fadigas e vicissitudes. E quando finalmente chegam ao seu destino, prostram-se diante do Menino, adoram-n’O, oferecem-Lhe os seus preciosos dons. Depois disso, partem novamente sem demora para voltar à sua terra. Mas aquele encontro com o Menino mudou-os.

O encontro com Jesus não retém os Magos, pelo contrário, infunde neles um novo impulso para regressar ao seu país, para contar o que viram e a alegria que sentiram. Nisto há uma demonstração do estilo de Deus, da sua maneira de se manifestar na história.

A experiência de Deus não nos bloqueia, mas liberta-nos; não nos aprisiona, mas põe-nos de novo a caminho, devolve-nos aos lugares habituais da nossa existência. Os lugares são e serão os mesmos, mas nós, depois do encontro com Jesus, não somos os mesmos de antes. O encontro com Jesus muda-nos, transforma-nos. O evangelista Mateus frisa que os Magos regressaram «por outro caminho» (v. 12). Eles são levados a mudar o caminho pela advertência do anjo, para não se depararem com Herodes e com os seus enredos de poder. Cada experiência de encontro com Jesus leva-nos a empreender caminhos diferentes, porque d’Ele provém uma força boa que cura o coração e nos restabelece do mal.

Há uma dinâmica sábia entre continuidade e novidade: voltamos «ao nosso país», mas «por outro caminho». Isto indica que somos nós que temos de mudar, de transformar o nosso modo de viver, ainda que seja no ambiente de sempre, de modificar os critérios de julgamento sobre a realidade que nos rodeia. Eis a diferença entre o verdadeiro Deus e os ídolos traidores, como o dinheiro, o poder, o sucesso…; entre Deus e aqueles que prometem dar-vos estes ídolos, como os magos, os cartomantes, os feiticeiros. A diferença é que os ídolos nos atraem, tornam-nos dependentes deles, e nós apoderamo-nos deles.

O verdadeiro Deus não nos prende, nem Se deixa prender por nós: abre-nos caminhos de novidade e liberdade, porque é Pai que está sempre connosco para nos fazer crescer. Se encontrardes Jesus, se tiverdes um encontro espiritual com Jesus, lembrai-vos: deveis voltar aos mesmos lugares de sempre, mas por outro caminho, com outro estilo.

É assim, é o Espírito Santo, que Jesus nos dá, que muda os nossos corações.

 

Arquivo de Folhas Informativas anteriores a 25.11.2018